Maracatu inflado

Festa no Poço da Panela, o mais charmoso pedacinho de Casa Forte. A prévia para crianças do bloco Guaiamum Treloso trouxe de São Paulo o pessoal do Palavra Cantada, trupe liderada por Sandra Peres e Paulo Tatit, e foi muito bem organizada – exceto apenas por uma dificuldade em se encontrar o lugar do show. Mas a estrutura montada para o evento, as barraquinhas de comida e bebida, o som…. tudo direitinho. Ponto especial para os organizadores pelo cuidado em espalhar mesas e cadeiras no sítio à beira do Capibaribe. Para quem vai com crianças e pessoas de mais idade, apoio como esse é fundamental.

Levei Helena para o show, que é fã do Palavra desde miudinha, e ela amou tudo, da orquestra de frevo ao grupo de maracatu. E era justamente aqui que eu queria chegar….

O Maracatu Nação Erê fez as alfaias do show. É um grupo de percussão nos moldes de maracatu nação, formado apenas por crianças e adolescentes de Brasília Teimosa, uma comunidade pobre, apertada entre Boa Viagem e os molhes do Porto do Recife. O grupo paulista não é exceção entre os que conhecem a cultura popular pernambucana, ama nossas tradições e a criatividade de nossa gente, é fã dos Erês, e inclusive produziu o cd dos meninos capibaribes.

Ora, em nossa Mauritstaad rediviva, os únicos meninos pobres no show eram os Erês: vestiam os trajes baratos do grupo, que pareciam doação de projeto social da prefeitura.

Aqui vocês podem me dizer: meninos pretos fazendo folia para meninos brancos, afinal, nada de novo nessa capital aristocrática do nordeste brasileiro. Foi dessa dialética sem síntese que a civilização do açúcar se construiu. Freyre, morador ilustre da Casa Forte, ensinou isso ao mundo ainda no século passado.

O que me parece razão de preocupação ao invés de orgulho, contudo, é que há hoje um novo contrato social que reproduz formas antigas de crueldade. A condição de “artistas” é hoje atribuída a esses meninos como justa e generosa  retribuição pelo trabalho de manter vivas as “raízes pernambucanas”; ontem, os pais mostraram a seus filhos as outras crianças, batuqueiras de periferia, dizendo que é muito bom que elas toquem desse jeito porque isso é “cultura”, e que é importante que a cultura seja “tocada”, por assim dizer, eternamente. O que não se fala, talvez até porque não se perceba, é que não há registro na história da humanidade de país que se desenvolveu usando suas crianças como mercadoria de entretenimento. Quando meninos tocam ou pelo pequeno cachê que recebem, ou porque a efêmera condição de estrelato do Carnaval lhes alivia a dureza da vida diária, ou porque – retórica cada vez mais comum – as oficinas de percussão lhes dá “cidadania”, e diminui sua vulnerabilidade social, é porque se vive um mundo cão, sem respeito à infância ou à esperança que ela representa. Ou será que alguém pensou na escola que essas crianças freqüentam, ou no ambiente doméstico que precisam enfrentar, ou no que iriam comer quando chegassem em casa, mais tarde?  Mais longe: será que alguém pensou que no Carnaval de 2035 os milhares de Erês do Recife serão porteiros, mecânicos e manicures dos Trelosinhos?  

Nós, pernambucanos, temos o vício de celebrar frevo e maracatu como se nesse universo imaginado da “cultura pernambucana” fôssemos todos iguais… no entanto, há um grande fosso entre as nossas crianças – para quem o maracatu é apenas um espetáculo lúdico – e as “outras” crianças: as que tocavam os bombos, que guardavam o carro no lado de fora, que trabalhavam recolhendo latinhas de alumínio, ou que simplesmente viam da calçada da Estrada Real o corso de crianças bonitas e felizes irem alegremente, com suas famílias, se divertir numa agradável tarde de domingo.

Para conviver melhor com nossas mazelas, hipervalorizamos os símbolos do maracatu. E com isso, talvez sem nos darmos conta, subtraímos boa parte de sua beleza.

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