Archive for the 'Opinião' Category

Bezerra da Silva e Foucault contra nós…

Tive o desprazer recente de testemunhar (e de quase ser vitimado) por uma saída de estádio de um jogo entre Sport e Náutico. Descuido meu: a CBN havia falado para se evitar a região da Abdias de Carvalho, pois não haveria como garantir a integridade física de quem passasse por ali até 30 minutos depois do fim da partida.

Primeiro fiquei com raiva da minha imprudência, mas logo depois da pasmaceira ideológica que domina nosso país. Ora: assalto é assalto, bandido é bandido, e fim de papo. Não sou eu quem deveria me privar de sair às ruas, são os marginais, que se organizam em quadrilhas para assaltar os carros, que deveriam ter medo de circular na cidade.

Ora, sejamos sinceros: tolerância com a delinqüência juvenil é um vício de lesa cidadania. Não é bom para o ânimo da sociedade nem para o futuro desses mesmos jovens, que se formam sem limites nem referências para a vida em coletividade. A competência para educar as pessoas é privada, assim como é pública a responsabilidade de punir a falta de educação.

Fala-se (e eu conheço muito bem o discurso…): menores delinqüentes são fruto de famílias abandonadas, epifenômeno da lógica de exclusão, seres humanos cuja existência revelaria, como que numa trágica fratura de fêmur, a “culpa de todos”. O arrastão contra o cidadão mediano que volta do trabalho seria, por assim dizer, uma “inevitável” – e por que não dizer  “justa” – retribuição pelo desemprego estrutural e pelo cenário desolador das favelas, donde a maior parte dos assaltantes, estupradores e assassinos provém.

Para corroborar tal “retórica retributiva”, lê-se a opinião do psicólogo e policial civil Marcelo Teles, segundo o qual em 90% das ocorrências trata-se de jovens oriundos de famílias chefiadas apenas pela mãe, nas quais o pai está preso ou morto, e onde os adultos estudaram, no máximo, os dois primeiros ciclos do ensino fundamental. Ora, porque então indignar-se com a situação? “Eles” estão pior do que “nós”, e a violência praticada contra o contribuinte opresso em condomínios cada vez mais asfixiantes seria corolário, meio que por vasos comunicantes, dessa violência “sistêmica” e “estrutural” do capitalismo.

No entanto – e ainda bem – há lucidez em meio às trevas desse discurso populista, irresponsável e simplificador. Em texto recente, o cientista político José Maria Nóbrega lembra da abordagem das Broken Windows para analisar a complexidade – e gravidade – do fenômeno da insegurança pública do Recife.

De acordo com aquele professor, o Broken Windows explica a criminalidade urbana a partir da ausência de autoridade e de ordem nos espaços públicos, ausência essa que deixaria tais espaços propícios à prática de delitos. A imagem das janelas quebradas evocaria a degeneração dos espaços da cidade em arenas caóticas e de progressiva decadência: pichações, uso do passeio público para necessidades fisiológicas, bêbados e drogados na rua a molestar transeuntes, moradores e crianças de rua, invasões de prédios particulares e governamentais, assim como outras condutas caracterizadas pelo vácuo estatal, que induziriam uma tendência degenerativa do espaço urbano, com a conseqüente decomposição da ordem pública. O crime propriamente dito seria conseqüência “natural” desse processo.

Desordem – aqui descrita também em termos de tais “pequenas” incivilidades, tão toleradas no país do “jeitinho” e do “coitadismo de esquerda” – seria a véspera da criminalidade. Gente: a ilegalidade não é um caminho respeitável nem tolerável para ninguém: nem para o cidadão de classe média que estaciona em lugar proibido, nem para o flanelinha que se oferece para “guardar” o veículo, mediante “justo” pagamento. Similarmente, uma biografia de dificuldades não justificará a opção pelo crime. E um país incapaz de atribuir responsabilidades individuais a cidadãos e governantes é um país sem futuro.

Alguns textos necessariamente inconvenientes:

http://www.olavodecarvalho.org/convidados/0153.htm

http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/banco-dos-reus-elites-intelectuais-esquerda/

May Twenty First

Today, above the Acaraú River, land of the UVA

This late morning I felt very tired. After climbing highs in the Jordão ridge, standing on the corner of a little house two meters wide, I could see that the floor was covered with straw for handcraft, where a skinny dog licked the scars that were wounding his tail, and I felt my breath quite sparing. Not much, after all.
The life here is simple like that, and it makes sense to be consumptive exactly like the old woman who was coughing on my left-hand corner. In front of her, there was an old bookcase from which was hanging an dusty DVD player and a satellite decoder. On the floor, close to the dog, a broken TV device. Few things to define an existence, we shall agree.
In front of me there was a thin woman, probably under 25, with part of her face deformed by a teeth abscess. Three or a little more kids, she couldn’t assure, boys or girls, eyes staring the vagueness. I was sat on the only seat of the house, but I had to refuse the coffee that was, so delicately, prepaired and offered to me. Labyrinthitis, I lied.
As Lars von Trier in Dogville, I know that it is extremely rude to refuse food in situations of a such scarcity. But I had to. It is extremely arrogant to write in English in places of ignorance. However, so I do. I’ve been over the last couple of days in Sobral, city named by a word that means something like “plenty of trees from which it extracts the cork for winery”. A standing fool on every corner, and in middle of nowhere it has rised the land of the eclipse which confirmed the curvature of the reason. Yes, ladies and gentlemen, on the outskirts of the Commonwealth, it makes sense every expression of contradiction and insanity. 
It is “no” the word that one can most easily to hear surrounding here. At that home, for example: no money, no food, no health, no public transportation, no government help. No hope, no praise, no social commitment.
There is – yes, that’s true –  the comprehensive public school, where they have food to attend teachers and students, and there is as well the soup of the Mother Teresa’s League, an catholic organization. In other words, it is necessary either reading a book or prays the rosary, in order to get a naïve piece of bread. Socialists and Christian conditionalities, who could understand them?

While social workers wear cheap suits and jewelry, and rest in white functional offices, proudly showing Stats of the government about the municipality to their visitors, I remember the swollen face, the stinking mouth, and the expression of hunger of the woman who was handling straws on the dog’s floor. Her mother’s tuberculosis. Their children, forgotten and ignored. A sword of compassion throughs my hurt chest for this unknown Brazil.

The coughing woman is enough to bother anyone ready to see that the difference, in Latin America, is the next of kin of the inequality. Radical differences mean, consequently, insurmountable inequalities.

I guess that streets with plates written in English just state that death and indifference are still coming, as always have done, to this part of the Northeast in a direct and Newtonian way, without any advances of the XXº century’s science. Poor are, as usual, preferencial victims. There are no progressive utopias stronger than reality. There are no national and visionary political projects more evident than the breathless desperation of an abandoned matriarch. And – very important to say – it makes no sense to build a bizarre copy of the Triumphal Arch where there is no triumphs to celebrate.
That agonic family, which had escaped from downtown Sobral – maybe too slowly to get released from the dust of cement factory, or the Grendene’s whistle, confirmates that the misery follows its march firmly and inexorably, and hopelessness is the universal language of the excluded.
Third largest GDP of Ceará? Oh, Ceará, land of jokermen, come on… For whom?
Please, ask the straws on the ground, the mangy dog, and the filters of cigarettes smoked by a ill and hopeless senior woman, and speak seriously.
Me, who have for a long time been skeptical of either grand speeches or sacred mobilizations, said I’m deeply sorry to the family, looked at the plain below me, breathed, and went down for the lunch.

A queda das longarinas

Fortaleza, 2010.

Sol, calor, mulheres sem bunda e homens olhando para o chão. Ruas sujas e esvaziadas. Pedintes, lugares turísticos cheios de nativos, lojas fechadas, ambulantes desistimulados apregoando seus bregueces para ninguém. O vazio entre os prédios inspira menos consciência urbanística que esfriamento do mercado imobiliário.
Allez, padeiros e porra, Cid Gomes! Liberdade não brota do bolso se sua semente não está na alma!

P.S.: Como gift, Lúcia Menezes nos brinda com a poética e profética Longarinas, de Ednardo. Veja aqui.

No Rio, um novo Orfeu do Carnaval

30/01 – Allegro Crescendo
O controle estará por todas as ruas da cidade

Urinar nas ruas do Rio de Janeiro pode levar o folião para a cadeia durante os dias de Carnaval. Segundo o Jornal O Dia, o efetivo da Guarda Municipal do Rio está orientado para levar preso em quem estiver urinando em via pública e responderá por ato obsceno. O detido poderá pagar o mesmo que um dono de animais paga por não recolher as fezes deixadas das ruas, o estimado entre RS 28,29 reais e R$ 2.829,77 reais.

A recomendação vem da Secretaria Especial de Ordem Pública, que no ano passado recebeu inúmeras reclamações sobre a situação. Ainda segundo o jornal, este ano serão instalados 3.200 banheiros químicos em toda a cidade (quatro vezes a quantidade de banheiros no ano passado), justamente para evitar que os foliões respondam por processos criminais. Estima-se que até o dia 21 de fevereiro, serão 641 desfiles e uma multidão de 2,49 milhões de pessoas por dia.

17/02 – Andante Rubatto
Na quarta de Cinzas, a Democracia que vem do xixi…

23/2 – Largo, ma non troppo

(Texto de Mara Telles, desde Belo Horizonte)
Lamentáveis os atos do prefeito do Rio de Janeiro – Eduardo Paes – punindo o cidadão comum para salvar o desejo da zona sul carioca por um choque d’ordre. Mas, a ordem é obrigação somente da “patuléia”, no caso do Rio, do povo que desce o morro.

O detalhe do imbróglio é que o PT, apesar de acertadamente ter apresentado um programa mais à esquerda em seu último Congresso, acaba por se aliar a todo tipo de gente, inclusive aos mesmos que botam o bloco da polícia na rua para correr atrás dos foliões mijões. Todo o programa da esquerda no Brasil, atualmente, se resume à justiça social – o que é absolutamente necessário e não é pouca coisa!. Mas, a questão da incorporação dos valores do morro pela gente do asfalto, a diversidade democrática, a cultura do cidadão comum e o diálogo para além da clivagem Estado/Mercado, não foram ainda temas incorporados ao debate de nenhum dos candidatos de plantão.

Não passa nada: a esquerda brasileira nunca foi lá muito democrática – salvo honrosas exceções. De resto, também a direita jamais deixou de se pautar pelo ranço autoritário. Um certo governador aboliu os tabagistas por canetada e os humilha cotidianamente, obrigando-os a exercer seu direito ao vício somente após as faixas amarelas, pintadas nas calçadas, como a separar os cidadãos comuns dos quase-marginais. Terão escolhido o amarelo para alegrar a metrópole gris, nestes dias em que as enchentes castigam a cidade?

No patropi, que hoje exibe orgulhosamente o título de oitava potência mundial – pouco sobra para o debate, sobretudo numa eleição que toma caminho plebiscitário, restando ao eleitor apenas se posicionar “contra” ou a “favor” do Nosso Guia.

É a economia, estúpido!

Elite ruim, sim senhor… pobre Latinamerica.

Quer saber?

A polarização esquerda-direita costuma servir, em termos ideológicos e eleitorais, muito para poucos, e muito pouco para a maioria. E isso será muito ruim para o país que, tendo incorrido nesta armadilha em sua juventude democrática, não saiba sair dela depois da conquista da estabilidade política. No nosso caso, a tal visão de mundo left-right (droite-gauche, pour les nostalgiques) já serviu, no passado, à bem avaliada direita de Médici, e serve hoje à igualmente bem avaliada esquerda de Lula. Foi muito ruim para o brasileiro médio da década de 70 – que aspirava por democracia e melhores condições de vida, e recebeu ditadura e inflação –  e continua terrível agora – quando o mesmo sujeto aspira, mais amplamente, por desenvolvimento econômico e social, redução nos impostos e ética na política. Em minha pobre leitura, à distância dos Andes e do calor das ruas de Santiago, pois já faz dez anos que não vou por lá,  o Chile sabiamente desistiu de tal bisonhice do século 20.

Parece-me que o texto de Valter Pomar (abaixo, e no link), que é um sujeito muito dado a manifestos e convocações à luta, revela, ao contrário, uma postura saudosista dos anos 70 do século passado, quando muitos de nós nascia, e dava os primeiros passos (só não sei ainda, pela sua truculência, se o cara está à “direita” ou à “esquerda”). 

Para Pomar há sempre uma “Grande Batalha” acontecendo… lembro-me então do menino que fui, e que lia, no fim dos anos 80 numa Campina do Barreto onde faltava tudo menos dignidade, o texto de Orwell.  Posso dizer, sem peso de consciência: puta que pariu!

Há em Pomar uma injustificável torcida por um futuro muito pior que aquele que eu desejo para o mim e para meu país, caso o resultado das urnas seja adverso ao apregoado pelo seu (nosso, quicá?) partido. Ameaça? Ah, Pomar… o delegado Fleury era muito mais competente em ameaçar…

Quer dizer que, se o Brasil não votar “em nós”, “já sabe”? Vai mesmo acabar o Bolsa-Família, o Vale-Bandido, e outros presentinhos da espécie? Não brinca….

Sinto que a elite do PT, que teve outrora íntima sintonia com a classe média, confirma lamentavelmente, pela sua atitude, que o que há em todas as sociedades é uma luta constante entre a elite no poder e o grande grupo dos que são dele excluídos. Não seria, então, uma luta de classes, ou uma maniqueísta luta entre os “esquerdistas do bem” e os “direitistas do mal” que moveria a história humana, mas uma real e impiedosa luta de elites, que não se extinguiria nem se fossem extintas todas as classes sociais. Pelo contrário: a “luta de classes” dos marxistas, assim como a antiga luta pelos “interesses nacionais” dos militares da ESG, escamoteiariam a real luta que ocorre em busca do poder, uma luta pragmática em pela ocupação de espaços e pelo controle de recursos. Do mesmo jeito que choviam casos de favorecimento e uso da máquina na época de FHC, não são raros os casos de corrupção no governo atual divulgados pela imprensa. Em ambos casos, as respostas do governo – quando os casos são/eram respondidos – é que se trata de denuncismo puro e simples.        

Manter a sociedade dividida em classes é, dessa maneira,  também interesse da “esquerda constituída” por várias razões. Dois de seus principais interesses nessa estratificação cruel são 1. o fato de que apenas a existência de pronunciada de pobreza material e espiritual na população justifica a tradicional retórica “de esquerda”, pois confere enraizamento social ao seu discurso, e lhe permite o alinhamento estratégico de sindicatos e de algumas entidades da sociedade civil (o controverso MST entre elas), e 2. ainda mais estranho, e desonesto, é o fato de que a condição de “liderança de esquerda” representa para seus líderes um canal de acesso aos estratos sociais superiores à sua condição de origem. “Liderança popular/ de esquerda”, é hoje, ao lado de jogador de futebol e pagodeiro, um efetivo mecanismo de mobilidade social. Um dos interesses opera no atacado, o outro, no varejo, e o resultado é um só: “a luta de esquerda precisa continuar”, “a mudança continua”, etc.

Olhem, amigos, para o Chile: tudo o que podia se esperar de Michele Bachelet – uma líder política séria – diferentemente de José Genoíno e J. R. Arruda – e da Concertacíon foi feito ao longo de 20 longas primaveras. Em geral, bons governos, adequados ao seu momento histórico e à sua missão de conduzir o país de volta à estabilidade democrática.  Ora, se é de fato assim, apenas um projeto “conservador de esquerda” – e defensor dos interesses de elites políticas, à Michells, que são muito mais orinetadas aos seus interesses particulares que aos difusos interesses nacionais –  podia dizer que Piñera não era a melhor alternativa para o momento chileno atual. O empresário era o único entre os candidatos que reconhecia que uma política de estímulo à produção e ao emprego, ancorada na defesa radical das liberdades civis ao invés da ampliação dos já pesados benefícios sociais, poderia manter a condição de destaque do país no continente.

Conduzi, e tive acesso aos resultados de, algumas pesquisas qualitativas que revelam que o cidadão recifense (e brasileiro) típico não é de direita nem de esquerda; talvez seja a favor ou contra o governo, ou a favor ou contra um ou outro candidato. No caso do Chile, o país mais próspero da AL, acredito que o eleitorado chegou a um nível de maturidade política no qual a vergonha da figura, e do infame período de Pinochet, não deve definir que grupos democráticos, orientaods ao mercado e à valorização da iniciativa individual, sejam vistos como responsáveis pelos abusos dos seus pretéritos ditadores. Piñera, que de acordo com seu staff de campanha não é “de direita” nem “de esquerda”, não deve se envergonhar por não ter sido preso ou torturado, e por se posicionar altivamente como uma alternativa à Concertacion. Ela, de esquierda, provavelmente deixaria o Chile muito parecido com a Argentina se governasse o país mais uma vez, mas preservaria rica e poderosa a sua elite dirigente.

Intimamente, neste sábado de Galo da Madrugada, acho que não há mais, se é que já houve, “direitista” ou “esquerdista”, no Brasil. Tem, sim, gente boa e gente ruim, e a maior parte da elite dos “ruins” já governou nos últimos 50 anos. E os bons, lamentavelmente, estão rareando.

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A batalha do Chile

Por Valter Pomar, secretário de relações internacionais do Partido dos Trabalhadores

A oposição de direita, no Brasil, está exultante: a eleição chilena seria a demonstração de que é possível derrotar uma candidatura apoiada por um governo bem avaliado por mais de 80% da população.

A direita européia também está contente: a eleição de Piñera (e, antes dele, do presidente do Panamá) demonstra que o modelo sarkozy-berlusconiano está fazendo escola. Filhote do pinochetismo e enriquecido pela privataria, Piñera é uma demonstração do que os capitalistas entendem por “igualdade de oportunidades”.

A direita latina e norte-americana está igualmente feliz: derrotados desde 1998 na maioria das eleições do subcontinente e recém-derrotados nas disputas presidenciais ocorridas no Uruguay e Bolívia, os conservadores podem apresentar o caso chileno como demonstração de que é possível reverter, nas urnas, “civilizadamente”, sem golpes, a hegemonia da centro-esquerda sulamericana.

Mas felizes mesmo estão os “gorilas” chilenos, que comemoraram ruidosamente, inclusive agitando nas ruas fotografias do falecido ditador, a derrota da Concertación. É a primeira vez, desde a década dos 1950, que a direita chilena consegue maioria eleitoral.

Eles têm motivos para felicidade. E a esquerda deve botar as barbas de molho.

Em primeiro lugar, porque a vitória de Piñera fortalece o bloco de governos alinhados com os Estados Unidos e opositores da integração continental. Colômbia e Peru ganham, assim, um aliado importante.

Em segundo lugar, porque está vitória não é um fato isolado. Ela faz parte de uma contra-ofensiva desencadeada pela direita latino-americana, apoiada pelo governo dos Estados Unidos e pela direita da União Européia. Esta contra-ofensiva inclui os ataques contra os “elos fracos” da rede de governos progressistas, como é o caso de Honduras; inclui o fortalecimento e a extensão da presença militar estado-unidense na região, a exemplo das bases na Colômbia e da IV Frota; e inclui uma provocação permanente contra a Venezuela.

Em terceiro lugar, mas principalmente, porque a derrota chilena foi produto combinado dos acertos da direita, com os erros da esquerda.

Já se falou muito no mais óbvio destes erros: a esquerda chilena participou do primeiro turno das eleições dividida entre três candidaturas presidenciais. E, no segundo turno, uma destas candidaturas titubeou no apoio a Eduardo Frei.

Também já se falou de outro erro óbvio: ao contrário da eleição anterior, quando percebeu a necessidade de mudança e lançou Bachelet, desta vez a Concertación foi hiper-conservadora. Escolheu como candidato um democrata-cristão, ex-presidente chileno, com idéias radicalmente moderadas, abrindo uma imensa brecha para que a campanha de Piñera pudesse ter como slogan a palavra: “mudança”.

Os erros acima têm relação, é óbvio, com a estratégia geral seguida pelos setores majoritários da esquerda chilena. Esta estratégia foi eficaz no quesito “governabilidade”, mas ineficaz nas “mudanças estruturais”. Isso se expressou, por um lado, na incapacidade de alterar os parâmetros constitucionais herdados do período Pinochet. E, por outro lado, numa política econômica que não foi capaz de superar a desigualdade social.

A influência desta estratégia moderada explica muito, mas não explica tudo. Afinal, foram 5 eleições e 4 vitórias. Neste sentido, há que considerar os acertos da direita (sempre forte e desta vez unificada), a fadiga de material (quatro governos seguidos) e algumas mudanças político-sociológicas ocorridas na sociedade chilena.

Há um quarto elemento, contudo, que deve ser estudado com atenção. Em 1973, o golpe não surpreendeu ninguém. Em 2009-2010, a derrota estava visível no horizonte. As situações são profundamente distintas, mas vale questionar por qual motivo –nos dois casos- a esquerda chilena, mais exatamente seu setor majoritário, foi incapaz de fazer uma correção de rumo.

Entre os vários motivos, cito um que pode ser encontrado nos mais diferentes países e matizes da esquerda: certa tendência a maximizar os feitos e minimizar os defeitos. Cuja acumulação, como sabemos, transforma quantidade em qualidade.

Para além do balanço acerca da derrota, é preciso preparar a resistência contra os vitoriosos. Há alguns dias, uma decisão judicial cassou a atuação legal do Partido Comunista do Chile, colocando em questão inclusive a posse de três parlamentares recém-eleitos. Isso é um sinal do que vem por aí.

A batalha do Chile continua, lá e em toda a América Latina. Outubro, no Brasil, será um momento absolutamente decisivo. Aprendamos com as derrotas, para saber como evitá-las.

Papo de carro, de calor e de dinheiro

Copenhague 2010, Lula 2014. Duas coisas nas quais me incomoda pensar.

O rei quer tirar férias, e deixar sua camareira tomando conta do castelo por quatro verões. Longe dali, os reis se reúnem numa terra fria para falar do calor que todos nós sentimos.

Paro de me ocupar dessas coisas, e vou ler a fatura do VISA que chegou. Um carro velho passa na rua lançando uma fumaça preta…

Sempre me perguntei por que não criar um sistema de imposto progressivo para veículos a partir de cinco anos de uso. Imagine: você compraria um veículo 2010 flex, com isenção de IPI, e pagaria um tributo realmente baixo pela posse do veículo até 2014, quando sobre o carro passaria a incidir um imposto progressivo ano a ano, sempre calculado com base no valor comercial do veículo. Como o carro deprecia e o imposto cresce, em muito pouco tempo a posse do carro seria economicamente inviável.

Por que isso?

Carros novos consomem menos combustível (e poluem menos), tem manutenção mais simples e barata, e empregam gente para serem produzidos, financiados e comercializados. Estimularíamos a aquisição de carros novos por famílias e empresas, baixaríamos a idade média da frota, e estimularíamos as montadoras, as concessionárias e o segmento dos bancos e financeiras. E o que fazer dos carros usados? Ora, o mesmo que o Japão faz: exportar. Eles, para o Pacífico. Nós, para Chávez, Lugo e Morales…

Afinal, a amizade com eles deve nos servir para alguma coisa, não é?

Sobre aquecimento global, um texto do Prof. Molion, da UFAL e do INPE, lembra que Epicuro precisa ser mais lido e respeitado.

C’est la Art long, et court le temps?

Em abril de 1998 eu cursava o terceiro ano da graduação de Filosofia, e estava trabalhando na organização de um sarau literário no CFCH/UFPE.

Não tínhamos textos para serem recitados, pois com o D.A. fechado, e sem o apoio da máquina do DCE, as adesões tinham sido muito pequenas ao evento. Após uma bela apresentação de canto coral (acho que foi do Coral Canto da Boca, da própria UFPE) que juntou um monte de gente, os organizadores pedimos a Flávio Carvalho, colega de curso, que declamasse alguns de nossos próprios textos.

Havia me lembrado de Enpassionée, um texto ligeiro, meio de brincadeira, que tinha escrito no último verão influenciado pela leitura do Ecce Homo, de Nietzsche, de La Philosophie dans le boudouir, do Marquês de Sade, e após ter assistido “A Grande Arte”, um filme que girava em torno da cutelaria, e que lançou Walter Salles como diretor de longas.

A inspiração imediata foi um soco que Fernando Rego Barros, jornalista da rede Globo local, tomou não se sabe de quem quando foi cobrir algum problema na CEASA. Lembro da cena do repórter com os óculos quebrados e rosto sangrando, um monte de leões de chácara ali por perto, e a polícia acompanhando a meia distância. A idéia era intercalar meus parágrafos com versos do soneto “A Fonte de Sangue”, do Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, para ressaltar ainda mais a dramaticidade da inspiração.

(…)

Il me semble parfois que mon sang coule à flots,

Ainsi qu’une fontaine aux rythmiques sanglots.

Je l’entends bien qui coule avec un long murmure,

Mais je me tâte en vain pour trouver la blessure.

(…)

O sangue do sujeito que foi fazer seu trabalho. Os capangas. Os precatórios, e o governo que era tido como o mais corrupto da história do Estado. Putz! O episódio da CEASA era o mundo real, enquanto nos corredores “subversivos” do CFCH só Marx, movimento de invasão de reitoria, e maconha “contra todo esse sistema que ‘tá aí…”.

Pus o texto para Flávio ler. Ele olhou para a folha de papel manuscrita, depois para mim, depois de novo para o papel. Soltou os cabelos meio como Sidney Magal nos anos setenta, e foi.

O resultado? Vaias, e um monte de gente que passou a me apontar nos corredores. Ninguém ameaçou claramente de me bater, não sei se por frouxura, senso do ridículo, ou porque nossos maconheiros só eram brabos mesmo contra o patrimônio público. Alguns deles hoje, por sinal, estão hoje nos governos.

Mas sinceramente, um monte de anos depois de o caso passado, não sei por que tanta celeuma. Era apenas um exercício estilístico, uma homenagem a grandes mestres da literatura, que não chegava nem a manifestar uma posição política clara. Nunca fui líder de nada, tampouco queria ser naquele momento. As referências do texto (na íntegra, abaixo) são intencionalmente contraditórias, contrastantes, e invocam imagens plasticamente importantes para o momento.

Ninguém comentou o mérito estético do texto – que é, admito, além de inócuo, pobre e imaturo de um ponto de vista literário – mas muitos se renderam ao apelo fácil do pensamento único. Pau nele, enfim.

Machista, bárbaro, brega, homofóbico, apologista de violência, e até ecologicamente incorreto…

É… os críticos de Enpassionée me convenceram que o melhor a fazer é falar por mim mesmo, antes que  “a vanguarda dos intelectuais” o faça. Este blog testemunha minha decisão!

 

Enpassionée

(1997)

Se alguém me perguntasse algo, poderia escolher perguntar se eu só sei falar de mulher. É verdade. Eu só sei falar de mulher. Adoro vê-las, ouvi-las, tocá-las, cheirá-las, comê-las. E se eu gosto de carne? É claro. Cozida, assada com cheiro de assassínio, cruenta, sangue escorrendo, no espetinho, na boca, na brecha dos dentes, no pasto, nas nádegas, nos lábios vermelhos, na poesia. Gosto de comer carne com mulher. E vice-versa.

Gosto de Pernambuco. De arma de fogo. De cana de cabeça. De quem não tem medo. Do Velho Faceta. De Jimmy Hendrix. De quem morre lutando. Se eu odeio palhaços? Não. Gosto de Renato Aragão, de Ariano Suassuna e até de outros coronéis do Nordeste. O que eu odeio é Miguel Arraes e Antônio Carlos Magalhães, mas isso é assunto pessoal. Gosto de Gisele Tigre, da Trupe do Barulho e do riso gostoso de Valmir Chagas. Gosto da Versão Brasileira, de Marrom e de todos os caboclinhos de Zona da Mata. Gosto de Caruaru, do monte com a antena, da Serra das Ruças. Gosto de Bernardo Viera de Melo e de todo o sacrifício imolado, do Cabo de Santo Agostinho e dos espanhóis que deixaram de nos roubar, do Santo Ofício que perseguiu nossos melhores poetas, da grande Guerra dos Guararapes e de Nossa Senhoras dos Prazeres, que não me valeram, mas que eu não deixo de louvar. Gosto de Alceu. De Melquisedec, o velho livreiro que me roubou três quartos das ilusões juvenis.  Gosto da Agamenon Magalhães e do esgoto que lhe põe vis-à-vis, lado de cá e lado de lá, Recife e Olinda, Boa Viagem e Varadouro, mascatemente.

Gosto do Hospital da Restauração e da canalha da Polícia Militar de Pernambuco. Gosto de Ferreira Gullar.  Gosto da rapazeada do Faces do Subúrbio, do Devotos do Ódio, do Planet Hemp e da Mundo Livre S/A. Gosto do Morro da Conceição, do Maracatu Cambinda Estrela, do jornalista Fernando Rego Barros, de Antúlio Madureira e de todo mundo que tem o cheiro da terra nas ventas. Gosto do sujo Treze de Maio, de Lúcia que atende na Biblioteca Estadual, dos cobradores de ônibus metidos a espertos. Do caldinho de feijão do Beco da Fome, dos peixes-bois de Itamaracá, de Adilson Ramos e da Caetés FM. Gosto do Teatro do Parque, do Forte das Cinco Pontas e do exemplo de Frei Caneca, dos Tambores Silenciosos, dos irmãos Maristas e de todas as freiras que induziram aborto tomando Cytotec. Gosto de todas as Marias de Fátima. Destas, de coração.

Gosto de Walter do Tribunal de Contas. Odeio a calma dos políticos ricos e aposentados. Amo a Ponte Buarque de Macedo, a Rua da Palma e a Praça Floriano Peixoto das putas. O pagode dos Irresponsáveis, Elza Show e seu sorriso triste, as pizzas da Pallermo e aqueles banheiros móveis, que a turma coloca nas festas de rua. Amo a turma que coloca banheiros móveis nas festas de rua. Amo o Bandeira 2, o NE TV, o Sport Club do Recife e a Escola Politécnica, da Fesp. Amo as tirinhas que saem no Jornal do Comércio, Laerte, Angeli, Charlie Brown. Amo o Mangue Beat, Geraldo Azevedo, o Biruta Bar. Amo o jeitinho da moça que me serviu caipirinha de Cointreau, e que talvez me leia, as lindas meninas do Comadre Fulozinha, a rapazeada dos Cascabulhos que redescobriu os tesouros de Jackson do Pandeiro. Mestre Salustiano e o Sonho da Rabeca. Tolero Kant e Che Guevara. Stalin e qualquer tipo de pabolagem me irritam. Fico triste com gente burra e gente ingênua. Sujeito brabo demais a gente dobra no cacete.

Gosto do mar em Calhetas, do Poço da Panela e do frio de Garanhuns. Gosto do rodízio do Porcão e da Filarmônica Norte-Nordeste. Balé Popular do Recife, rio São Francisco, gente desdentada dando duro na lavoura, Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, Grupo Gay da Bahia, Daruê Malungo e Soparia do Pina. Não gosto do vice-prefeito, Raul Henry.

Gosto sim de dobermann, de briga de foice, de prostituta que chora por amor, da execução de cada juiz corrupto no meio da rua, de cada viúva de deputado que publica nota de desagravo. Conto nos dedos os dias que faltam para que se fulminem todos os covardes. Gosto de Bezerra da Silva. De Nietzsche, de Schopenhauer e de Salman Rushdie. Gosto de Saddam Hussein, do povo de Timor Leste, de Cuba e da guerrilha do Sendero Luminoso. Gosto de Zé Limeira, o poeta do absurdo, do regicídio e do Cinema Novo. Não gosto de lobbistas, de araque de polícia, de tráfico de influência, das armas da retórica.

As melhores armas são as curtas, de baixo calibre. A melhor distância é de quatro a seis metros. A melhor posição é de pé, de frente para o alvo. O melhor alvo é o terceiro botão da camisa.

Maracatu inflado

Festa no Poço da Panela, o mais charmoso pedacinho de Casa Forte. A prévia para crianças do bloco Guaiamum Treloso trouxe de São Paulo o pessoal do Palavra Cantada, trupe liderada por Sandra Peres e Paulo Tatit, e foi muito bem organizada – exceto apenas por uma dificuldade em se encontrar o lugar do show. Mas a estrutura montada para o evento, as barraquinhas de comida e bebida, o som…. tudo direitinho. Ponto especial para os organizadores pelo cuidado em espalhar mesas e cadeiras no sítio à beira do Capibaribe. Para quem vai com crianças e pessoas de mais idade, apoio como esse é fundamental.

Levei Helena para o show, que é fã do Palavra desde miudinha, e ela amou tudo, da orquestra de frevo ao grupo de maracatu. E era justamente aqui que eu queria chegar….

O Maracatu Nação Erê fez as alfaias do show. É um grupo de percussão nos moldes de maracatu nação, formado apenas por crianças e adolescentes de Brasília Teimosa, uma comunidade pobre, apertada entre Boa Viagem e os molhes do Porto do Recife. O grupo paulista não é exceção entre os que conhecem a cultura popular pernambucana, ama nossas tradições e a criatividade de nossa gente, é fã dos Erês, e inclusive produziu o cd dos meninos capibaribes.

Ora, em nossa Mauritstaad rediviva, os únicos meninos pobres no show eram os Erês: vestiam os trajes baratos do grupo, que pareciam doação de projeto social da prefeitura.

Aqui vocês podem me dizer: meninos pretos fazendo folia para meninos brancos, afinal, nada de novo nessa capital aristocrática do nordeste brasileiro. Foi dessa dialética sem síntese que a civilização do açúcar se construiu. Freyre, morador ilustre da Casa Forte, ensinou isso ao mundo ainda no século passado.

O que me parece razão de preocupação ao invés de orgulho, contudo, é que há hoje um novo contrato social que reproduz formas antigas de crueldade. A condição de “artistas” é hoje atribuída a esses meninos como justa e generosa  retribuição pelo trabalho de manter vivas as “raízes pernambucanas”; ontem, os pais mostraram a seus filhos as outras crianças, batuqueiras de periferia, dizendo que é muito bom que elas toquem desse jeito porque isso é “cultura”, e que é importante que a cultura seja “tocada”, por assim dizer, eternamente. O que não se fala, talvez até porque não se perceba, é que não há registro na história da humanidade de país que se desenvolveu usando suas crianças como mercadoria de entretenimento. Quando meninos tocam ou pelo pequeno cachê que recebem, ou porque a efêmera condição de estrelato do Carnaval lhes alivia a dureza da vida diária, ou porque – retórica cada vez mais comum – as oficinas de percussão lhes dá “cidadania”, e diminui sua vulnerabilidade social, é porque se vive um mundo cão, sem respeito à infância ou à esperança que ela representa. Ou será que alguém pensou na escola que essas crianças freqüentam, ou no ambiente doméstico que precisam enfrentar, ou no que iriam comer quando chegassem em casa, mais tarde?  Mais longe: será que alguém pensou que no Carnaval de 2035 os milhares de Erês do Recife serão porteiros, mecânicos e manicures dos Trelosinhos?  

Nós, pernambucanos, temos o vício de celebrar frevo e maracatu como se nesse universo imaginado da “cultura pernambucana” fôssemos todos iguais… no entanto, há um grande fosso entre as nossas crianças – para quem o maracatu é apenas um espetáculo lúdico – e as “outras” crianças: as que tocavam os bombos, que guardavam o carro no lado de fora, que trabalhavam recolhendo latinhas de alumínio, ou que simplesmente viam da calçada da Estrada Real o corso de crianças bonitas e felizes irem alegremente, com suas famílias, se divertir numa agradável tarde de domingo.

Para conviver melhor com nossas mazelas, hipervalorizamos os símbolos do maracatu. E com isso, talvez sem nos darmos conta, subtraímos boa parte de sua beleza.

Sujeira: deles, e para nós.

Perdoem-me os soteropolitanos, mas uma cidade suja é definitivamente uma cidade infeliz. Nada contra Salvador, claro: nossos irmãos baianos parecem viver alegres em meio às toneladas de lixo espalhadas pelos seus principais logradouros. Ou Olinda: há até quem diga que o lixo que rebola da Ladeira da Misericórdia abaixo é parte do charme do Carnaval (?!).
Mas aqui em Recife não dá.
O lixo na rua faz non-sense da reflexão urbanística que Lefebvre tece acerca das cidades, segundo a qual a rua seria muito mais que um lugar de passagem e circulação, mas sim um local do encontro de diferenças, encontro esse que realizaria o espírito próprio da vida nas cidades. Em meio ao lixo das ruas e calçadas, no entanto, nenhum encontro ocorre, e desviamos uns dos outros como evitamos as tulhas e os monturos. Numa cidade de lixo, os outros, e os espaços que com eles compatilhamos, são reduzidos a dispositivos funcionais (quer de uso, quer de passagem) para o trabalho e o consumo.
Nas cidades sujas os espaços públicos perdem seu apelo ao convívio, e a propensão das pessoas ao caos hobbesiano – homo lupus homini – é reforçada. Pedestres, motoristas, ciclistas e, principalmente, moradores de rua – essa terrível anomalia urbana – passam a ser percebidos como não-seres humanos, obstáculos ao nosso propósito de locomoção breve e eficiente.
Ora, um erro muito comum no discurso majoritário sobre o problema é aquele que deduz que rua limpa e agradável é um corolário da presença estatal. Quando se fala no assunto, a premissa da “publicidade da rua” é invocada pelo seu apelo emocional, olvidando-se que publicidade é um conceito político, e não um tabu urbanístico que não possa ser analisado em termos dos seus limites e características específicas. Isso, a meu ver, atrapalha a emergência de idéias que possam efetivamente ajudar a resolver o problema do descuido com os espaços da cidade.
Ora, o importante é assegurar uma cidade limpa e agradável, o que independe do ator que realize as tarefas do serviço.  Eu, por exemplo, acredito que o tratamento condominial da manutenção urbana –  com o respectivo desconto nos tributos municipais, ou mesmo a eventual remuneração aos condôminos encarregados do contrato – pode ser uma boa solução para o problema. Moradores, lojistas e outros ocupantes de uma determinada circunscrição territorial podem perfeitamente se encarregar da limpeza e do cuidado com esse lugar a partir de algumas pautas, estabelecidas em contrato com o poder público. Isso inclusive facilitaria a criação de laços entre diversos atores da comunidade, e o incremento no seu stock de capital social, um importante requisito das sociedades democráticas.
É apenas uma idéia. Mas, sabemos, os milionários contratos de limpeza urbana entre empreiterias e prefeituras envolvem recursos suficientes para financiar campanhas eleitorais…
E o dinheiro, nesses casos, nem sempre é distinto da sujeira.

http://www.mafiadolixo.com/2009/05/prefeitura-do-recife-aponta-para-o-atraso-da-contratacao-de-empresa-privada-para-a-coleta-do-lixo-da-cidade/

http://www.diariodepernambuco.com.br/2010/01/05/politica1_0.asp

Outra do Prata: Meio intelectuais, meio de esquerda.

Essa é paradigmática. Tem a cara da classe média de Recife, cidade que se orgulha de desbancar Porto Alegre nas suas pretensões “a la sinistra”. ‘Guenta aí:

Meio intelectual, meio de esquerda
http://meiointelectual.blogspot.com/

Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio ruins.
Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de 150 anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de 150 anos, mas tudo bem).
No bar ruim que ando freqüentando nas últimas semanas o proletariado é o Betão, garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas acreditando resolver aí 500 anos de história.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar “amigos” do garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de literatura.
“Ô Betão, traz mais uma pra gente”, eu digo, com os cotovelos apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte do Brasil.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte do Brasil, por isso vamos a bares ruins,que tem mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gateau e não tem frango à passarinho ou carne de sol com macaxeira que são os pratos tradicionais de nossa cozinha.
Se bem que nós, meio intelectuais, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gateau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.
A gente gosta do Brasil, mas muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil.
Assim como não é qualquer bar ruim.
Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, se tiver porção de carne de sol, a gente bate uma punheta ali mesmo.
Quando um de nós, meio intelectuais, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum outro meio intelectual, meio de esquerda freqüenta, não nos contemos: ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim.
Porque a gente acha que o bar ruim é autêntico e o bar bom não é, como eu já disse.
O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas.
Até que uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e nesse ponto a gente já se sente incomodado e quando chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual, nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e universitários, a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó.
Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV.
Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevete e chinelo Rider.
Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico.
E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.
Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos: os que entendem a gente e os que não entendem.
Os que entendem percebem qual é a nossa, mantém o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam em 50% o preço de tudo.
Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato.
Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando reggae.
Aí eles se fodem, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão brasileira, tão raiz.
Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda, no Brasil!
Ainda mais porque a cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres estão todos de chinelo Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gateau pelos quatro cantos do globo.
Para desespero dos meio intelectuais, meio de esquerda, como eu que, por questões ideológicas, preferem frango a passarinho e carne de sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca mas é como se diz lá no nordeste e nós, meio intelectuais, meio de esquerda, achamos que o nordeste é muito mais autêntico que o sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é mais assim Câmara Cascudo, saca?).
– Ô Betão, vê um cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?


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