Humeanas

I.

Chego aos trinta anos, e me pergunto se outros guardam da infância lembranças como eu guardo. Menino mais velho de uma família urbana típica, duas crianças, na maior parte do tempo eu inventava jogos e brinquedos para uma só pessoa, em geral orientados ao teste dos pueris contrafactuais que eu alimentava sobre o mundo dos mais velhos. Aos quatro anos, arranquei uma válvula de TV com as mãos e quase fui eletrocutado. Aos seis, adaptei um dispositivo de bomba-relógio usando como estopim um pedaço de repelente de mosquitos que, após cuidadosamente preparado e “acidentalmente” implantado numa janela vizinha, recusou-se a explodir: durante a noite de vigília “científica” choveu, e eu havia esquecido de proteger o pavio contra água. Na manhã seguinte, a velha moradora da casa alimentava as galinhas do quintal, como sempre fazia, e eu, subitamente consciente do perigo no qual envolvera a mim e a outros,  segui para a escola com o coração dividido:  feliz por não lhe ter brindado com o susto que adiantaria a morte, mas triste por ter sido incompetente com meu engenho. 

Já na meninice, então, passei a desconfiar daquilo que, tempos depois, descobri serem os chamados de mecanismos de causação. Inclinado ao ceticismo, desacreditei do princípio segundo o qual para cada raio de luz supõe-se uma fonte luminosa,  e que para cada comando de voz supõe-se um autor (e, claro, uma obrigação de fazer…). Desconfiava, de maneira ainda um tanto confusa, que tal relação de causa e efeito surge na nossa cabeça logo na primeira vez em vimos  o fenômeno acontecer, e que, organizando temporalmente o ocorrido,  associamos a experiência sonora da voz à pessoa que a emitiu. Posteriormente, tal regra de associação passa a operar em qualquer experiência semelhante,  ajudando-nos a imaginar um vínculo ontológico entre a ocorrência anterior e a posterior: como no tempo um fenômeno qualquer costuma suceder a outros, concluímos que eles estão causalmente ligados.

Tempos mais tarde, e muitos reveses depois, vim conhecer na universidade a crítica ao princípio de causalidade elaborada por David Hume, no século dezoito. Tal crítica, tão simples quanto famosa, foi importante ao desenvolvimento da inteligência ocidental a ponto de Imannuel Kant, o grande pensador alemão, afirmar que foi Hume quem lhe despertou de seu “sono dogmático”.

II.

Hume diz que a ligação que estabelecemos ao supor causalidade entre acontecimentos não provém da razão, e que somos, assim, menos “racionais” do que gostaríamos. O fato de esperarmos certos efeitos de alguns fenômenos, seja por hábito ou por observação demonstrativa, faz com que vejamos o mundo de maneira fatalmente singular e contingente. Para garantir sua sobrevivência em meio ao turbilhão dos sentidos, o ser humano coloca ordem nas coisas, e as estrutura em sua consciência segundo a sua experiência pessoal e as práticas culturais do grupo em que se insere.

A vida prática, irmã dileta das ciências naturais, tem, assim, uma base fundamentalmente irracional, posto que utilitarista, emocional, e orientada à resolução de questões imediatas. O que estaria em jogo, então, não seria a verdade dos fatos, mas antes a sobrevivência individual ou, num nível mais sutil, a realização dos desejos de cada sujeito: na ávida busca pelas coisas, minimizamos a importância do logos e abdicamos dos rigorosos processos de descoberta da verdade (heurística, para usar um termo técnico) em favor das rotinas de argumentação e convencimento.

O próprio Hume, que apontou para a falta de credibilidade objetiva de nossas crenças empíricas, parece sugerir uma saída deste dilema. Ele reconhece a existência objetiva das causas de fenômenos de nossa experiência prática ao dizer que mesmo um cético precisa aceitar a existência objetiva de um corpo contundente, de uma transformação físico-química ou de um estado emocional.  Sua crítica orienta-se, então, à noção de percepção experimental da causalidade,  ao estabelecer que nossas percepções sobre o mundo objetivo guardam apenas hipóteses,  prováveis em maior ou menor grau. A causalidade, assim, não seria objetiva (já que a pura sucessão temporal não estabelece relação necessária entre fenômenos), da mesma forma que, não necessariamente, “causas” semelhantes produzirão os mesmos efeitos. Na ciência, como na vida, a certeza irredutível deve ser arejada pela dúvida inteligente, e pela reserva de probabilidade. Afinal, surpresa, expectativa, suposição e verificação são fenômenos tipicamente humanos e subjetivos, e não moram nas coisas em si.

III.

Nunca soube que Hume tivesse especial interesse na vida sentimental das pessoas de sua época: ele, de fato, parecia muito mais interessado na reconstrução da teoria clássica do conhecimento que nas desilusões amorosas das senhoras escocesas daquela Bretanha assustada pela ditadura de Cronwell. Nem sei se ele se casou, se criou seus filhos, ou se costumava caminhar à tarde nos agradáveis verões de Edimburgo.

Talvez incidentalmente, portanto, Hume explicou-me muito sobre a vida das pessoas comuns, daquelas que amargam desilusões, têm medo da solidão, da pobreza, da doença, ou que guardam no peito ressentimentos contra aqueles que já lhes fizeram sofrer (bem, o grupo inclui quase todo mundo!). Em nossos relacionamentos, os desencontros costumam brotar do fato de que cada um de nós é formado a partir de uma coincidência singular de certo grupo de experiências intersubjetivas – partilhadas com outros membros dos vários grupos a que pertencemos – e com outro conjunto de experiências idiossincráticas, pautadas na nossa vivência íntima, e na nossa percepção pessoal das experiências pela quais passamos.

Essas duas dimensões – intersubjetivas/sociais e idiossincráticas/íntimas – nem são estanques, nem facilmente distinguíveis, e por isso mesmo formam o núcleo central daquilo que somos; é aqui que registramos nossa memória biográfica, nossos costumes, guardamos nossos valores, gostos e prioridades. É também neste espaço vital, mas impreciso, que humeanamente inferimos relações causais para entender nossas experiências pessoais, e construímos um cinturão protetor cheio de reações condicionadas: proteja-se ao ver um cachorro brabo em querendo atacar; evite pimenta vermelha para não magoar a úlcera; ao ouvir uma buzina de carro, step back para a calçada, fuja de mulheres com olhos de cigana oblíqua e dissimulada, e assim por diante.

IV.

Quando, no contato diário, experimentamos a natural discordância entre a nossa percepção das coisas e a percepção das outras pessoas, tendemos a querer convencer os outros da veracidade de nossa percepção – afinal, nossa percepção empírica mora no mesmo lugar onde moram coisas ainda mais fundamentais, como a nossa auto-estima e identidade pessoal. Via de regra, cada uma das partes apresenta a sua versão acreditando na objetividade da descrição, mas inevitavelmente agindo e julgando com os seus próprios – e singulares – valores.

Considerada a base utilitarista da vida cotidiana, normalmente nos permitimos dialogar desde que o outro admita, ao término da conversa, que nossa percepção corresponde à verdade objetiva, ou seja, pautada nas coisas mesmas. Apesar de todo o recurso a critérios de argumentação e arrazoados, esse é basicamente um processo de autodefesa, pois queremos evitar que os valores e crenças que guiam nossas rotinas e prioridades sejam ameaçados em sua veracidade  e transcendência (leia-se: legitimidade). Daí o fato de, não raro, convertermos a priori diálogo em disputa, debate em conflito, e continuarmos vivendo, séculos depois de Hume, como quem está em permanente contenda, onde o preço do fracasso é a morte, ou a humilhação. Viveríamos assim empobrecidos porquanto  predeterminados – como bem observou Schopenhauer – a mostrar que os nossos argumentos estão certos, esquecendo da preocupação da verdade em si mesma.

Talvez tal intensa preocupação com o sucesso, e com o prestígio no grupo em que nos inserimos, bloqueie parte de nossa capacidade de discernir. Exatamente como fazem os empiristas mais ingênuos, ao priorizar o efeito percebido e não a investigação da causa suposta, rapidamente deduzimos as intenções dos outros a partir do impacto de suas atitudes sobre nós – supomos o antecedente pelo conseqüente, e caímos na mais elementar falácia formal – o que, tanto na vida como na ciência, costuma levar ao erro e à generalização apressada. Querendo ser inteligentes, optamos pela estupidez.

Pior ainda: quando o impacto da ação do outro sobre nós é grande e negativo, procedemos com a mais institiva das “lógicas”, e chegamos à “conclusão óbvia” de que o outro agiu muito mal-intencionado. Silogismo consecutivo: más intenções significam mau caráter (outra conclusão imediata). Nessa situação, tanto nós como nossos pares, como se fôssemos bichos acoados, entramos num jogo de perde-e-ganha, assumimos posturas de conflito engendradas na suposição recíproca de nossas “más intenções”. Supostamente racionais, diálogos assim costumam ser dominados pela irracionalidade típica da vida prática, e dificilmente percebemos a degeneração afetiva e moral produzida pelo nosso próprio comportamento.

 (Verão de 2006)

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