Archive for the 'Além do espelho' Category

Todos os nomes do inominável

O ateu José Saramago partiu hoje.

Enluteço, pela piedade de Deus.

O enorme espaço vazio

Para onde rumam as almas do incréus

Ficará muito mais belo com a sua nobre chegada.

O enorme espaço vazio

Aberto entre nós pela sua passagem

Ficará muito menos vácuo

Pela concretude inamovível de sua obra.

La Plata, Amarante

Para Ednardo,  Andrew Lloyd Weber e Karen Carpenter

 

 

Não, Ceará, não me peça que te esqueça

Nem chore por mim, ao saber que não saberás

Como me sinto.

De teu amor não preciso. Sou o homem a quem não te deste

Salvo sorrateiramente, roubada

E em violência consentida.

E nada de mim conheceste, apenas minha estranhez de classe média

Minha propensão a sonhos insonháveis

E minha inconsolável saudade do que não houve.

Não chorarás por mim, Fortaleza.

Não nasci aqui, e não sou como você.

Se tive de deixar acontecer tal incompleto caso de amor

Foi porque quis. Porque pedi, e implorei. Hoje, sozinho

Miro o mundo por Mucuripe, e sei claramente

Que um tipo especial de sol

Claudicante, inclemente e inoportuno

Nasce daqui, engabela meridianos, e se impõe ante

(outras tantas)

Fortalezas de Latinamérica.

Parto, eu que escolhi a liberdade

E que sei que liberdade aqui não há.

Mas é fato que tampouco hei de te esquecer

Sem promessa nem perdão, ulterior mas imanente

Tu não manterás distância. Nem poderias.

Não chorarás por mim, Fortaleza

Nem tu, nem as putas de Iracema, nem o porteiro do hotel

Nem os mototaxistas, professores, ou moradores de Maracanaú.

Não há excesso no que digo

Como no mar que irrita os olhos

Como no tempo que não cessa

Passarei, e ficarei.

Se é amor, quem saberá?

Se é verdade, a quem importa?

Canindé

Hoje, pela visagem da estátua de São Francisco de Assis 

 

Mate um índio: tire-lhe o direito ao toque,

Ao sexo, e à falta de pudor.

Tire do índio o direito de ser indiferente

Indeferente

Aos sonhos velhos da política, e ao pesadelo velho dos ex-

votos.

Faça mais: tire do índio o direito de olhar, e desejar, assim

Assum

Preto, fure os olhos

subtraia os óculos e sem além, sem juízo, olhe

Mas não veja sequer as

Chagas de São Francisco.

Órbitas vazias, realejo de porta de igreja, corte fora o pé,

Humilhe, emascule, mortifique.

Por fim, tire do mauro ameríndio

o direito de falar.

Drene seu choro

e numa lixa ao contrário, lacere o polimento acrílico,

Os vernizes sobrepostos à tez escura,

Ao riso claro,

À ciência inata de que esta terra é só um pedacinho

do universo

e que o universo é coisa alheia, é teu corpo e estrangeiro,

e sou

e sôo

Muito mais do muito menos

Eu. Espólio.

Morto. Re-d

Vivo?

Remarque, Lispector & Arrabal

Um passarinho cruza baixinho, rente ao pára-brisa. Um pardal que não voa toma de conta: manter os 60 km/h, ou multa. Duas mulheres sem capacetes se agarram numa Biz rumo a Santa Quitéria.

Um professor, uma professora. Uma família muito pobre, e outra nem tanto… Muita gente diz “aan-rã” neste país de meu Deus….

Meninos pequenos ralam os ovinhos no chão. Um cachorro indolente, que não sabe se vai ou se fica, dança um reggae à Olodum.

Três homens chupam cigarro de palha, e uma macabéa-sem-hímen namora o ônibus da Guanabara que passa sem nem dar chau.

Um bêbado olha para uma velha cega, e os dois sem saber reclamam do cocô que os morcegos largam do alto da cumeeira das casas…

Nada de novo, enfim, nem mesmo um piquenique de cuscuz, no infinito front cearense.

Dezenove de cinco

Hoje, muito longe de Aldeota, 10:10. 

Uma senhora gorda e suada, uma plantinha venenosa na caqueira, e o cheiro de alguma coisa ignorada fritando por trás da cortina improvisada. O ar pesa um pouco, e eu não sei se é tontura a sensação que me dá. Pano passado num chão que exala Veja de eucalipto, e eis que um gato cinza desliza de bombordo a estibordo pelo convés do barraquinho abafado.

Duas pessoas moram aqui, mas uma distância mediterrânea as separam; dá para perceber facilmente. E é verdade: foi em Fortaleza, e não em Málaga, que inventaram o terral…  

A senhora traz um ventilador pequeno, e em solidariedade eu começo a suar também. Quantos graus fariam agora neste triste e fragmentado subúrbio? Não sei, e reconheço minha ignorância diante da Bíblia que descansa sobre uma bicama cuidadosamente forrada, enquanto um mp3 pirata, consagrado e monotônico, desfila suas duzentas e tantas faixas pelo monitor da TV.

O senhor é de fora, né?

Sou, sim senhora. Sou do Recife…

Eu não o ganho benefício não, moço… perdeu a viagem. Quase rio, mas não rio.

Eu sei, senhora. E gostaria de conversar um pouco sobre isso. E a conversa segue.

Mulher sozinha, avó de menino que vai a Maracanaú se drogar. Ela não sabe, mas sabe. O canal de Maracanaú, afinal, é logo ali no fim da rua… mais perto que a escola, mais perto que a Igreja, muito mais palpável que o gosto de ver a cria estudar e seguir seu rumo como homem de bem.

Além, muito além, contudo, de sua capacidade de controlar um mundo que não conhece, mas conhece.

A senhora não chora, e a panela começa a queimar. Carne queimada, claro, reconheço o cheiro agora, já com alguma nitidez.

Sai, o gato volta, e um adolescente com cicatriz aparece de cueca, por trás da cortina. Crack? Não sei…. muito magro para sua idade, pele já sem cor, e uma perceptível tremidinha na cabeça, acompanhada de dois ou três sussurros incompreensíveis. Vejo a avó concordar, enxugando a mão numa toalhinha pequena.

Não, não é crack… nenhum registro de coisas sumindo de dentro de casa… pó? Não, muito caro. Cola? Talvez, cola …

Isso é uma fase, né, moço? Espero em Deus que passe. E me passa um pouco d’água, quase morna, em um copo engordurado.

Faço a entrevista, mas tenho alguma dificuldade em me concentrar no roteiro.

Termino e agradeço, não sem declinar polidamente do sincero convite para almoçar.

Nessa hora, o vapor que sobe do chão de pedras me parece fresco. Não há viv’alma na rua.

Em silêncio, entro no carro, ligo o ar condicionado, e me permito balbuciar as últimas palavras do Pai Nosso.

Meditação do Cariri

Seis de Maio, 9:00h.
O velhinho ainda era um rapaz imberbe na tarde em que decepou a cabeça de Lampião com um lance de facão, durante o cerco de Angicos. Explicou: “foi só uma lapada, zupt, e é assim…”
Fiquei matutando se isso era hombridade, ingenuidade ou simplesmente covardia – categorias simétricas e fundamentais, como os lados de um triângulo, nessa grande loja maçônica que é o interior nordestino.
Para se matar alguém é preciso apenas ter uma razão, uma oportunidade, e um instrumento. Razões qualquer um tem, e para quem ainda não tem, qualquer um dá. As oportunidades vêm do excesso de autoconfiança que o de cujus experimenta antes de passar. Instrumentos? Bem, os instrumentos vêm dos portes funcionais, das matérias da imprensa, das calçadas da feira de passarinhos, dos contrabandistas internacionais, do comércio do centro.
O velho tinha os três… na verdade, decapitar lampião era como tirar na loteria. Cortou na segunda vértebra, e virou uma bosta de cabo de polícia aquela merdinha de soldado amarelo. Bosta por merda, claro, era melhor ser funcionário público, do tipo que dá tapa na cara dos outros munido de uma patente que serve, entre outras coisas, para mandar entregar água na casa da quenga, e para fazer fiado no mercantil.
Penso, diante da serra impassível, sobre a dissoluta macheza que haveria em decapitar o cadáver de um homem metralhado pelas costas, numa tocaia. E mesmo mais perplexo: qual é a valentia de se bater na esposa? O que há de nobre em gerar 19 para criar 8? Qual a dignidade em aterrorizar os meninos: “lá vem pai, Chiquin, lá vem pai”?
O velho morreu de câncer na próstata, e sua foto amarelada ainda está na parede da barbearia. Velho e insuperavelmente só, apesar de parte das filhas velarem seu desenlace ao derredor da cama. “Unfe, Unfe… pai morreu…”
Deixou para elas uma pensão vitalícia, concedida pelo Estado, pelo assassinato de um homem e de sua companheira durante o sono. Por isso as filhas, segundo a mais universal das lógicas, decidiram não se casar para não perder o benefício… claro, é melhor gerar bastardos que perder a pensão…
A casa de pai tá lá, e desde 2005, quando mãe morreu, os irmãos desfiam parabelos pela herancinha de porta-e-janela. Facões? Traições? Sertanejos guilhotinamentos, experimentados no interior da sagrada família cearense?
Decerto haverá louros nessa mesmice: o sertão sempre se reinventa quando algum filho (ou neto, ou bisneto) daquele finado velho original, ou de outro velho qualquer, vira prefeito em alguma remota freguesia dos Angicos. Ou do Seridó. Ou das usinas de cana de açúcar das Alagoas. Ou do São Francisco. Ou do Pajeú. Ou mesmo, e novamente, dos longínquos Cariris que cochilam feito cascavel, aqui na minha frente… Que tédio… mas é assim que a história tem se perpetuado por aqui.
Conclamo, então: promotores de justiça, auditores, jornalistas e analistas políticos do Nordeste, uni-vos!
Evitem sempre que os outros tenham razão, e ainda assim corram das circunstâncias. Desse modo, e por isso mesmo, estejam sempre afiados com os meios. Matar ou morrer é fácil, zupt, já dizia o velho.
Palavra. Previdência. Firmeza de caráter. Microsoft Word. 380, vinte e um tiros.

O pé de serra dos outros

Para Karim Aïnouz, Humberto Teixeira, e E., mãe de D.

Primeiro de maio de 2010

As ruas desta urbe têm complexo de orbe, e adoram gritar pros enxeridos: contramão, contramão! Não dá para dobrar à direita, não dá para dobrar à esquerda.

Não dá para seguir em frente: puta!

Não dá para ficar parado: vagabundo véi!

Foi assim comigo: teoricamente vindo “de fora”, mas empiricamente nascido na Campina do Barreto e caído recentemente do norte do Ceará, eu me ocupava ao volante, dirigindo minha equipe rumo a um velho desconhecido. Iguatu, terra dos bravos (ou covardes?) índios Quixelô e de do bravo (ou biograficamente covarde?) bacharel Humberto Teixeira. Água boa, que lava e envenena.

Puxa… o filme de Karim Aïnouz é um dos mais importantes a que já assisti na vida. Entre outras coisas, ele me encorajou a propor uma nationwide bem avaliada proposta de doutoramento…

Foi envolvido n’O Céu de Suely que eu cri inevitável repensar, em termos teórica e tecnicamente mais consistentes, algo que vislumbrava desde os já remotos tempos de graduação: se partir for difícil (afinal, navegar é preciso) voltar será fatal. Bem ou mal, sucesso ou destruição, Ulisses ou Tieta, o que importará no fim das contas é o modo como você volta. Lição dos lusitanos, revolta dos beatniks

Sejamos sinceros: porra, pedir perdão a quem? Pedir perdão por que? As coisas acontecem quando acontecem, e nós, que trabalhamos demais, vemos à noite e logo antes de rezar, o estrago que a vida real faz nas ilusões.

Cedo para demais pensar nessas coisas, e pouco depois do crepúsculo, cansado como qualquer trabalhador que opta por trabalhar quando o senso comum proíbe, e tende a recusar o batente quando o senso comum obriga, eu quis achar uma locadora de DVD para assistir ao filme rodado aqui, tempos atrás.

Precisava ser aqui, e Karïm tinha toda razão. O céu de Iguatu brota deste chão surpreendentemente árido (mesmo para mim!), do olhar desconfiado de Panoptes, da recusa irrefletida e imediata, do preconceito vivo em uma cidade construída sobre o cemitério de tupis localizado nalgum ponto entre o sal do Atlântico e um crepúsculo incompreensível, mas de certa forma, necessário. Fui à melhor locadora da cidade, segundo a opinião de um emblemático mototaxista. Jalequinho, jeito molente, e vontade de ajudar.

A loja era contígua a um duty hard (pois nada aqui é free, salvo talvez o sexo de meninas sem esperança e a boa vontade dos espíritos livres) destinados aos poucos nativos que possuem casa em Fortaleza (ou Recife, ou Rio, ou São Paulo?). Tudo aqui é tão longe, que o mais importante é que as coisas permaneçam como estão. Em mar aberto, dizem medrosos, água de rio se dilui. E é fato.

Esquecem-se apenas de que o mar, ou qualquer outro além, são inevitáveis para se beijar o Céu. Açude municipal, gente, é pouco para se viver em plenitude!

Após pequenos descaminhos e confusões – contramãos, enfim – cheguei à loja, e tchuns!, eis que interajo com um cavalheiro gordo, bem nascido e apessoado, com expressivos olhos trocados, e a reputação da “melhor locadora da cidade” a preservar. “Por favor, o Sr. tem o Ceú de Suely?” “O Sr., por acaso, é de Iguatu?” “Não Sr.” “Tem família aqui?” “Não Sr.”. “É……. tem, mas tá faltando, viu?”. “Puxa… e onde eu encontro?” “Se o Sr. não é daqui, ninguém vai lhe alugar…”

Saí preocupado. Queria o filme, mas só tinha encontrado desaprovação. Afinal, o que vinha fazer aqui?

Logo quando achara a locadora, e a loja de conveniência vizinha, achei que a sorte tinha me brindado com um filme e uma garrafa de Johnnie W. Black, criaturas absolutamente bem vindas em tempos de se mudar de vida. Agora não sei mais.

Sim, é questão de dinheiro, sim. Não há problemas de dizer que o dinheiro é ao mesmo tempo a metáfora do poder e o instrumento do seu exercício. Claro! Marcuseanamente, ganhá-lo ou não não fará diferença no que se crê importante: criar filhos, plantar árvores, ajudar estudantes pobres a construírem um país melhor… O que eu penso, assim, é que possuí-lo, e ajudar os outros a ganhar o seu próprio, é importante que se possa fazer o que de fato importa, e que quem é ruim (já me ensinou mainha, quando menino, na mesa da cozinha de casa), por si se destrói. 

O dinheiro não salvará o mau, mas permitirá que o bom seja feliz.

(…)

Não, não creio que conseguiria viver aqui… Não sem paliativos. Não sem virar um cidadão como aquele (e aí, para mim, já não seria mais viver…) Não dá para acordar tendo de explicar aos onipresentes e  intrometidos olhares tudo o foi feito ou sonhado na noite anterior, o que se fará na próxima, ou até por que se quer alugar um filme numa bosta de melhor locadora da cidade! Sendo negro, estrangeiro, e usando os inevitáveis “t” que Karina usa nas oxítonas, os únicos lugares para mim, com sorte, seriam as motos de carregar gente sem capacete, a graxa de brilhar sapatos, ou traslado de bagagens no único hotel com valetes na cidade (este último, puxa! inequívoco privilégio). Carteira assinada? Qué qué isso senhor? Somos de Lula, não de Vargas!

Talvez seja isso: uma cidade pesada. Uma menina magra me diz, no restaurante do hotel, “afe Maria, se eu fosse de fora num tinha trabalho aqui não” “E o que a senhora acha disso?” “Eu? Olhe, eu sou senhorita, viu? Quer mais gelo?”.

Onde achar o Céu neste horizonte interminavelmente cansativo? Disseram-me: No Largo da igreja há uma locadora de vídeo improvisada em banca de revista, onde há um trio de irmãos que se espremem entre os DVDs a corroborar, pelo degredo dos tempos idos e na memória do frio de São Paulo, aquilo que seus corações já sabiam: preconceito e reticências não ajudam, nem nunca ajudaram, as pessoas de espírito livre. É uma questão de lógica: não poderemos fazer deste país um lugar melhor para se viver enquanto as diferenças forem vistas como impedimentos ao invés de oportunidades.

“Tenho sim, e tá na mão, chefe!”. Não me perguntou de onde venho, nem para onde vou. Racionalmente, pediu-me pela locação um preço um pouco acima da média, para cobrir o risco de qualquer eventual calote. Deu-me um cartãozinho de visitas, disse-me “bom filme”, e voltou a seu trabalho, como fazem as pessoas civilizadas. Afinal, que risco um nordestino ordinário, como tantos que se vêem no Brás ou na estação da Sé, pode representar para outro nordestino ordinário?

Cálculo atuarial preciso: elemento cognitivo e moral típico dos sentimentos democráticos, e tradicional aliado daqueles que amam a mudança e a prosperidade. Sotaquezinho vagamente paulista, jeito de quem nasceu muito mais pobre do que acha justo terminar a vida. Nessa Iguatu existencial, a necessidade de sobreviver sempre se encontra com o desejo de viver melhor. Não, não é só ganhar o pão… é a atitude altiva de abrir uma banquinha de DVD’s atrevidamente competitiva, e desbancar o velho que está lá desde os tempos em que Luiz Gonzaga andava por aqui, antes mesmo do VHS existir. Nesse caso, alugar DVD a estranhos ou rifar seu próprio corpo para dar de comer ao filho só são diferentes em termos de escala, mas não na origem da atitude.

Aluguel sem ficha, com data de segunda-feira, e de volta à loja de conveniência. Sim, eu sou black, mereço meu Black!

Com o filme numa mão e a garrafa na outra viu-me o velho, sentado desde uma mesinha ao fundo, mordendo alguma coisa. Eu o reconheci com certo desprazer, mas relevei. Afunda aí mesmo, infeliz. A grande e nobre nação cearense há de ser muito mais que um amontoado de cidadãos dessa estirpe!

Ao perceber minha compra “extravagante” paga com um cartão platinum, escutar o português falado em declinações claramente exóticas mas nítidas e definidas, e olhar o filme abrigado na minha mão, gritou lá do seu canto: “ei, o Sr. é de onde, mesmo?” “De longe, Sr., de muito longe daqui”!

______________

E. Tem vinte e três anos, aparenta problemas mentais, e alimenta D., de nove anos, e mais três filhos com o benefício do Bolsa Família. Ela não tem autoridade sobre suas crianças para fazê-las freqüentar a escola, mas a diretora da unidade em que estão matriculados disse-nos, em entrevista, que não informa ao governo as faltas dos meninos, pois essa é a única esperança para aquela família. No dia em que conversamos com ela, E. olhava para o nada, e cobria com um curativo a última agressão que sofreu de seu namorado, viciado em drogas e presidiário.

Vinte e oito de quatro

Pelas estradas do mar para o sul, o céu do Ceará varia de tamanho: fica grande, fica miúdo; ora aberto numa campina, ora espremido nas laterais lascadas de uma serra.
Fiquei pensando se foi Goethe que nos deu uns versos falando que o tamanho do céu determina o tamanho do caráter: se mais amplo, mais afoito; se mais miúdo, mais acanhado… matutei: se for Goethe o poeta, e se estiver Goethe correto, as serras que chegam e vão impedem que sertanejo do Ceará seja o hércules-quasímodo que Euclides da Cunha encontrou na Bahia, no tempo da campanha de Canudos. É hoje um homem como outro qualquer, que acessa internet wireless numa bodega, e que está pronto para amar ou ressentir, conforme o caso. Machado de Assis desbanca Goethe, que se ajunta a Cunha e José de Alencar na porta, sem senha para o evento.
Nosso sertanejo não é cabra que odeie. Não parece haver muito ódio por aqui, nem gente disposta a perder tempo com essas coisas. O que se tem é muita cachaça amarga para beber, baião-de-dois no almoço, um bocado de cobra jararaca nos matos, celular de cartão nas mãos dos meninos e – mais importante – uma desconfiança insuperável no olhar pessoas. Ou seja: tirando o baião-de-dois e a cobra da caatinga, temos falado com pessoas comuns, daquelas que se encontram nas ruas São Paulo, Recife, Governador Valadares ou Brasília.
Fui me hospedar numa pousadinha miúda, cidade solitária de um entre-serras, e alguém com mais ou menos céu no horizonte me perguntou, ainda no check-in,: e o número do seu Visa? Como assim, número do meu VISA antes da despesa? É… por garantia, macho!
Eu, Camila e Rose temos desse jeito andado por aqui. Um carrinho alugado em Fortaleza, rodízio no volante, trabalho pesado de dia, trabalho pesado de noite.
Durante o dia, os cearenses são nosso foco: Fortaleza, Mombaça, Acopiara; durante à noite, na mesa do jantar, em meio a instrumentos de pesquisa e impressões pessoais, nossa visão dessa experiência é o centro. Pra que mentir, se a limitação ontológica de ser indivíduo engravida com tantos sorrisos sem lábios, estradas esburacadas, e com o sabor inconfundivelmente acre das pimentas trituradas? Sim, queremos conhecer vocês… venham, yankee-sobralinos, venham, cristãos do Canindé. Venham, minha gente, falem conosco…
Pizzas, questionários, anotações. Dispensamos gravadores, e falamos dos inúmeros spots que bombardeiam nossas retinas. Rose é uma menina com alma de artista: free soul à procura de prá-conceitos para dissolver… um redoxon de estereótipos: esqueça tudo que leu de teoria, a vida é maior. Camila, heroína travestida de advogada, faz-nos perceber crepúsculos atrás das serras. Opinião precisa tange a menina tímida, como que a convencer o mais convicto incréu. Ama horizontes. É, para ela o futuro há de ser melhor, e o namoro com o real é a sua arma rumo à utopia. Sim, o Brasil será melhor, basta olhar na direção certa… para ela, entre o agora e o daqui a pouco há muita diferença.
Nessa moldura imagens me vêm: funcionários comissionados sentem-se à vontade para falar do futuro da república sob a foto epopéica do governador. Horas depois, desocupados se reúnem numa bodega, e numa nova Confederação do Equador, expropriam a SKY do bodegueiro e filam uma reprise qualquer da Eurocopa. Putz, que parte do tempo passou? Será que já somos, “modernos”, “incluídos”, “democráticos” ?
Há também meninos sem sandália, ambulantes que vendem trufas, eternos candidatos a prefeito, fotos de Collor e Lula na parede dos estabelecimentos comerciais, mapas do estado desenhados em cartolina. Numa clara ausência de referências, Fortaleza é um ponto como outro qualquer. Pecém? O que é Pecém, mesmo?
Para dirimir dúvidas, policiais em Hiluxes. De lado, o más allá (não parece fazer muita diferença…), mototáxis com jalequinho, putas famintas largando do batente na hora do desajuno, meninas violadas pelo padrasto, velhinhos cancerosos deitados na rede, e pessoas murchadas no calor, sem muita esperança. A cor do jalequinho varia com a cor do candidato. A esperança (o que é esperança, mesmo?) é a última de morre. Depois do canceroso da rede. Paixão pelo Flamengo raceada com música de Catulo.
Uma ou outra senhora loura lança uma opinião liberal. Na hora do ângelus toca um forró eletrônico, e com a convicção salvívica do cartão amarelinho, todos na feira conclamam:
– United we stand. Que jeito, né?

Humeanas

I.

Chego aos trinta anos, e me pergunto se outros guardam da infância lembranças como eu guardo. Menino mais velho de uma família urbana típica, duas crianças, na maior parte do tempo eu inventava jogos e brinquedos para uma só pessoa, em geral orientados ao teste dos pueris contrafactuais que eu alimentava sobre o mundo dos mais velhos. Aos quatro anos, arranquei uma válvula de TV com as mãos e quase fui eletrocutado. Aos seis, adaptei um dispositivo de bomba-relógio usando como estopim um pedaço de repelente de mosquitos que, após cuidadosamente preparado e “acidentalmente” implantado numa janela vizinha, recusou-se a explodir: durante a noite de vigília “científica” choveu, e eu havia esquecido de proteger o pavio contra água. Na manhã seguinte, a velha moradora da casa alimentava as galinhas do quintal, como sempre fazia, e eu, subitamente consciente do perigo no qual envolvera a mim e a outros,  segui para a escola com o coração dividido:  feliz por não lhe ter brindado com o susto que adiantaria a morte, mas triste por ter sido incompetente com meu engenho. 

Já na meninice, então, passei a desconfiar daquilo que, tempos depois, descobri serem os chamados de mecanismos de causação. Inclinado ao ceticismo, desacreditei do princípio segundo o qual para cada raio de luz supõe-se uma fonte luminosa,  e que para cada comando de voz supõe-se um autor (e, claro, uma obrigação de fazer…). Desconfiava, de maneira ainda um tanto confusa, que tal relação de causa e efeito surge na nossa cabeça logo na primeira vez em vimos  o fenômeno acontecer, e que, organizando temporalmente o ocorrido,  associamos a experiência sonora da voz à pessoa que a emitiu. Posteriormente, tal regra de associação passa a operar em qualquer experiência semelhante,  ajudando-nos a imaginar um vínculo ontológico entre a ocorrência anterior e a posterior: como no tempo um fenômeno qualquer costuma suceder a outros, concluímos que eles estão causalmente ligados.

Tempos mais tarde, e muitos reveses depois, vim conhecer na universidade a crítica ao princípio de causalidade elaborada por David Hume, no século dezoito. Tal crítica, tão simples quanto famosa, foi importante ao desenvolvimento da inteligência ocidental a ponto de Imannuel Kant, o grande pensador alemão, afirmar que foi Hume quem lhe despertou de seu “sono dogmático”.

II.

Hume diz que a ligação que estabelecemos ao supor causalidade entre acontecimentos não provém da razão, e que somos, assim, menos “racionais” do que gostaríamos. O fato de esperarmos certos efeitos de alguns fenômenos, seja por hábito ou por observação demonstrativa, faz com que vejamos o mundo de maneira fatalmente singular e contingente. Para garantir sua sobrevivência em meio ao turbilhão dos sentidos, o ser humano coloca ordem nas coisas, e as estrutura em sua consciência segundo a sua experiência pessoal e as práticas culturais do grupo em que se insere.

A vida prática, irmã dileta das ciências naturais, tem, assim, uma base fundamentalmente irracional, posto que utilitarista, emocional, e orientada à resolução de questões imediatas. O que estaria em jogo, então, não seria a verdade dos fatos, mas antes a sobrevivência individual ou, num nível mais sutil, a realização dos desejos de cada sujeito: na ávida busca pelas coisas, minimizamos a importância do logos e abdicamos dos rigorosos processos de descoberta da verdade (heurística, para usar um termo técnico) em favor das rotinas de argumentação e convencimento.

O próprio Hume, que apontou para a falta de credibilidade objetiva de nossas crenças empíricas, parece sugerir uma saída deste dilema. Ele reconhece a existência objetiva das causas de fenômenos de nossa experiência prática ao dizer que mesmo um cético precisa aceitar a existência objetiva de um corpo contundente, de uma transformação físico-química ou de um estado emocional.  Sua crítica orienta-se, então, à noção de percepção experimental da causalidade,  ao estabelecer que nossas percepções sobre o mundo objetivo guardam apenas hipóteses,  prováveis em maior ou menor grau. A causalidade, assim, não seria objetiva (já que a pura sucessão temporal não estabelece relação necessária entre fenômenos), da mesma forma que, não necessariamente, “causas” semelhantes produzirão os mesmos efeitos. Na ciência, como na vida, a certeza irredutível deve ser arejada pela dúvida inteligente, e pela reserva de probabilidade. Afinal, surpresa, expectativa, suposição e verificação são fenômenos tipicamente humanos e subjetivos, e não moram nas coisas em si.

III.

Nunca soube que Hume tivesse especial interesse na vida sentimental das pessoas de sua época: ele, de fato, parecia muito mais interessado na reconstrução da teoria clássica do conhecimento que nas desilusões amorosas das senhoras escocesas daquela Bretanha assustada pela ditadura de Cronwell. Nem sei se ele se casou, se criou seus filhos, ou se costumava caminhar à tarde nos agradáveis verões de Edimburgo.

Talvez incidentalmente, portanto, Hume explicou-me muito sobre a vida das pessoas comuns, daquelas que amargam desilusões, têm medo da solidão, da pobreza, da doença, ou que guardam no peito ressentimentos contra aqueles que já lhes fizeram sofrer (bem, o grupo inclui quase todo mundo!). Em nossos relacionamentos, os desencontros costumam brotar do fato de que cada um de nós é formado a partir de uma coincidência singular de certo grupo de experiências intersubjetivas – partilhadas com outros membros dos vários grupos a que pertencemos – e com outro conjunto de experiências idiossincráticas, pautadas na nossa vivência íntima, e na nossa percepção pessoal das experiências pela quais passamos.

Essas duas dimensões – intersubjetivas/sociais e idiossincráticas/íntimas – nem são estanques, nem facilmente distinguíveis, e por isso mesmo formam o núcleo central daquilo que somos; é aqui que registramos nossa memória biográfica, nossos costumes, guardamos nossos valores, gostos e prioridades. É também neste espaço vital, mas impreciso, que humeanamente inferimos relações causais para entender nossas experiências pessoais, e construímos um cinturão protetor cheio de reações condicionadas: proteja-se ao ver um cachorro brabo em querendo atacar; evite pimenta vermelha para não magoar a úlcera; ao ouvir uma buzina de carro, step back para a calçada, fuja de mulheres com olhos de cigana oblíqua e dissimulada, e assim por diante.

IV.

Quando, no contato diário, experimentamos a natural discordância entre a nossa percepção das coisas e a percepção das outras pessoas, tendemos a querer convencer os outros da veracidade de nossa percepção – afinal, nossa percepção empírica mora no mesmo lugar onde moram coisas ainda mais fundamentais, como a nossa auto-estima e identidade pessoal. Via de regra, cada uma das partes apresenta a sua versão acreditando na objetividade da descrição, mas inevitavelmente agindo e julgando com os seus próprios – e singulares – valores.

Considerada a base utilitarista da vida cotidiana, normalmente nos permitimos dialogar desde que o outro admita, ao término da conversa, que nossa percepção corresponde à verdade objetiva, ou seja, pautada nas coisas mesmas. Apesar de todo o recurso a critérios de argumentação e arrazoados, esse é basicamente um processo de autodefesa, pois queremos evitar que os valores e crenças que guiam nossas rotinas e prioridades sejam ameaçados em sua veracidade  e transcendência (leia-se: legitimidade). Daí o fato de, não raro, convertermos a priori diálogo em disputa, debate em conflito, e continuarmos vivendo, séculos depois de Hume, como quem está em permanente contenda, onde o preço do fracasso é a morte, ou a humilhação. Viveríamos assim empobrecidos porquanto  predeterminados – como bem observou Schopenhauer – a mostrar que os nossos argumentos estão certos, esquecendo da preocupação da verdade em si mesma.

Talvez tal intensa preocupação com o sucesso, e com o prestígio no grupo em que nos inserimos, bloqueie parte de nossa capacidade de discernir. Exatamente como fazem os empiristas mais ingênuos, ao priorizar o efeito percebido e não a investigação da causa suposta, rapidamente deduzimos as intenções dos outros a partir do impacto de suas atitudes sobre nós – supomos o antecedente pelo conseqüente, e caímos na mais elementar falácia formal – o que, tanto na vida como na ciência, costuma levar ao erro e à generalização apressada. Querendo ser inteligentes, optamos pela estupidez.

Pior ainda: quando o impacto da ação do outro sobre nós é grande e negativo, procedemos com a mais institiva das “lógicas”, e chegamos à “conclusão óbvia” de que o outro agiu muito mal-intencionado. Silogismo consecutivo: más intenções significam mau caráter (outra conclusão imediata). Nessa situação, tanto nós como nossos pares, como se fôssemos bichos acoados, entramos num jogo de perde-e-ganha, assumimos posturas de conflito engendradas na suposição recíproca de nossas “más intenções”. Supostamente racionais, diálogos assim costumam ser dominados pela irracionalidade típica da vida prática, e dificilmente percebemos a degeneração afetiva e moral produzida pelo nosso próprio comportamento.

 (Verão de 2006)


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