Vinte e oito de quatro

Pelas estradas do mar para o sul, o céu do Ceará varia de tamanho: fica grande, fica miúdo; ora aberto numa campina, ora espremido nas laterais lascadas de uma serra.
Fiquei pensando se foi Goethe que nos deu uns versos falando que o tamanho do céu determina o tamanho do caráter: se mais amplo, mais afoito; se mais miúdo, mais acanhado… matutei: se for Goethe o poeta, e se estiver Goethe correto, as serras que chegam e vão impedem que sertanejo do Ceará seja o hércules-quasímodo que Euclides da Cunha encontrou na Bahia, no tempo da campanha de Canudos. É hoje um homem como outro qualquer, que acessa internet wireless numa bodega, e que está pronto para amar ou ressentir, conforme o caso. Machado de Assis desbanca Goethe, que se ajunta a Cunha e José de Alencar na porta, sem senha para o evento.
Nosso sertanejo não é cabra que odeie. Não parece haver muito ódio por aqui, nem gente disposta a perder tempo com essas coisas. O que se tem é muita cachaça amarga para beber, baião-de-dois no almoço, um bocado de cobra jararaca nos matos, celular de cartão nas mãos dos meninos e – mais importante – uma desconfiança insuperável no olhar pessoas. Ou seja: tirando o baião-de-dois e a cobra da caatinga, temos falado com pessoas comuns, daquelas que se encontram nas ruas São Paulo, Recife, Governador Valadares ou Brasília.
Fui me hospedar numa pousadinha miúda, cidade solitária de um entre-serras, e alguém com mais ou menos céu no horizonte me perguntou, ainda no check-in,: e o número do seu Visa? Como assim, número do meu VISA antes da despesa? É… por garantia, macho!
Eu, Camila e Rose temos desse jeito andado por aqui. Um carrinho alugado em Fortaleza, rodízio no volante, trabalho pesado de dia, trabalho pesado de noite.
Durante o dia, os cearenses são nosso foco: Fortaleza, Mombaça, Acopiara; durante à noite, na mesa do jantar, em meio a instrumentos de pesquisa e impressões pessoais, nossa visão dessa experiência é o centro. Pra que mentir, se a limitação ontológica de ser indivíduo engravida com tantos sorrisos sem lábios, estradas esburacadas, e com o sabor inconfundivelmente acre das pimentas trituradas? Sim, queremos conhecer vocês… venham, yankee-sobralinos, venham, cristãos do Canindé. Venham, minha gente, falem conosco…
Pizzas, questionários, anotações. Dispensamos gravadores, e falamos dos inúmeros spots que bombardeiam nossas retinas. Rose é uma menina com alma de artista: free soul à procura de prá-conceitos para dissolver… um redoxon de estereótipos: esqueça tudo que leu de teoria, a vida é maior. Camila, heroína travestida de advogada, faz-nos perceber crepúsculos atrás das serras. Opinião precisa tange a menina tímida, como que a convencer o mais convicto incréu. Ama horizontes. É, para ela o futuro há de ser melhor, e o namoro com o real é a sua arma rumo à utopia. Sim, o Brasil será melhor, basta olhar na direção certa… para ela, entre o agora e o daqui a pouco há muita diferença.
Nessa moldura imagens me vêm: funcionários comissionados sentem-se à vontade para falar do futuro da república sob a foto epopéica do governador. Horas depois, desocupados se reúnem numa bodega, e numa nova Confederação do Equador, expropriam a SKY do bodegueiro e filam uma reprise qualquer da Eurocopa. Putz, que parte do tempo passou? Será que já somos, “modernos”, “incluídos”, “democráticos” ?
Há também meninos sem sandália, ambulantes que vendem trufas, eternos candidatos a prefeito, fotos de Collor e Lula na parede dos estabelecimentos comerciais, mapas do estado desenhados em cartolina. Numa clara ausência de referências, Fortaleza é um ponto como outro qualquer. Pecém? O que é Pecém, mesmo?
Para dirimir dúvidas, policiais em Hiluxes. De lado, o más allá (não parece fazer muita diferença…), mototáxis com jalequinho, putas famintas largando do batente na hora do desajuno, meninas violadas pelo padrasto, velhinhos cancerosos deitados na rede, e pessoas murchadas no calor, sem muita esperança. A cor do jalequinho varia com a cor do candidato. A esperança (o que é esperança, mesmo?) é a última de morre. Depois do canceroso da rede. Paixão pelo Flamengo raceada com música de Catulo.
Uma ou outra senhora loura lança uma opinião liberal. Na hora do ângelus toca um forró eletrônico, e com a convicção salvívica do cartão amarelinho, todos na feira conclamam:
– United we stand. Que jeito, né?

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