O pé de serra dos outros

Para Karim Aïnouz, Humberto Teixeira, e E., mãe de D.

Primeiro de maio de 2010

As ruas desta urbe têm complexo de orbe, e adoram gritar pros enxeridos: contramão, contramão! Não dá para dobrar à direita, não dá para dobrar à esquerda.

Não dá para seguir em frente: puta!

Não dá para ficar parado: vagabundo véi!

Foi assim comigo: teoricamente vindo “de fora”, mas empiricamente nascido na Campina do Barreto e caído recentemente do norte do Ceará, eu me ocupava ao volante, dirigindo minha equipe rumo a um velho desconhecido. Iguatu, terra dos bravos (ou covardes?) índios Quixelô e de do bravo (ou biograficamente covarde?) bacharel Humberto Teixeira. Água boa, que lava e envenena.

Puxa… o filme de Karim Aïnouz é um dos mais importantes a que já assisti na vida. Entre outras coisas, ele me encorajou a propor uma nationwide bem avaliada proposta de doutoramento…

Foi envolvido n’O Céu de Suely que eu cri inevitável repensar, em termos teórica e tecnicamente mais consistentes, algo que vislumbrava desde os já remotos tempos de graduação: se partir for difícil (afinal, navegar é preciso) voltar será fatal. Bem ou mal, sucesso ou destruição, Ulisses ou Tieta, o que importará no fim das contas é o modo como você volta. Lição dos lusitanos, revolta dos beatniks

Sejamos sinceros: porra, pedir perdão a quem? Pedir perdão por que? As coisas acontecem quando acontecem, e nós, que trabalhamos demais, vemos à noite e logo antes de rezar, o estrago que a vida real faz nas ilusões.

Cedo para demais pensar nessas coisas, e pouco depois do crepúsculo, cansado como qualquer trabalhador que opta por trabalhar quando o senso comum proíbe, e tende a recusar o batente quando o senso comum obriga, eu quis achar uma locadora de DVD para assistir ao filme rodado aqui, tempos atrás.

Precisava ser aqui, e Karïm tinha toda razão. O céu de Iguatu brota deste chão surpreendentemente árido (mesmo para mim!), do olhar desconfiado de Panoptes, da recusa irrefletida e imediata, do preconceito vivo em uma cidade construída sobre o cemitério de tupis localizado nalgum ponto entre o sal do Atlântico e um crepúsculo incompreensível, mas de certa forma, necessário. Fui à melhor locadora da cidade, segundo a opinião de um emblemático mototaxista. Jalequinho, jeito molente, e vontade de ajudar.

A loja era contígua a um duty hard (pois nada aqui é free, salvo talvez o sexo de meninas sem esperança e a boa vontade dos espíritos livres) destinados aos poucos nativos que possuem casa em Fortaleza (ou Recife, ou Rio, ou São Paulo?). Tudo aqui é tão longe, que o mais importante é que as coisas permaneçam como estão. Em mar aberto, dizem medrosos, água de rio se dilui. E é fato.

Esquecem-se apenas de que o mar, ou qualquer outro além, são inevitáveis para se beijar o Céu. Açude municipal, gente, é pouco para se viver em plenitude!

Após pequenos descaminhos e confusões – contramãos, enfim – cheguei à loja, e tchuns!, eis que interajo com um cavalheiro gordo, bem nascido e apessoado, com expressivos olhos trocados, e a reputação da “melhor locadora da cidade” a preservar. “Por favor, o Sr. tem o Ceú de Suely?” “O Sr., por acaso, é de Iguatu?” “Não Sr.” “Tem família aqui?” “Não Sr.”. “É……. tem, mas tá faltando, viu?”. “Puxa… e onde eu encontro?” “Se o Sr. não é daqui, ninguém vai lhe alugar…”

Saí preocupado. Queria o filme, mas só tinha encontrado desaprovação. Afinal, o que vinha fazer aqui?

Logo quando achara a locadora, e a loja de conveniência vizinha, achei que a sorte tinha me brindado com um filme e uma garrafa de Johnnie W. Black, criaturas absolutamente bem vindas em tempos de se mudar de vida. Agora não sei mais.

Sim, é questão de dinheiro, sim. Não há problemas de dizer que o dinheiro é ao mesmo tempo a metáfora do poder e o instrumento do seu exercício. Claro! Marcuseanamente, ganhá-lo ou não não fará diferença no que se crê importante: criar filhos, plantar árvores, ajudar estudantes pobres a construírem um país melhor… O que eu penso, assim, é que possuí-lo, e ajudar os outros a ganhar o seu próprio, é importante que se possa fazer o que de fato importa, e que quem é ruim (já me ensinou mainha, quando menino, na mesa da cozinha de casa), por si se destrói. 

O dinheiro não salvará o mau, mas permitirá que o bom seja feliz.

(…)

Não, não creio que conseguiria viver aqui… Não sem paliativos. Não sem virar um cidadão como aquele (e aí, para mim, já não seria mais viver…) Não dá para acordar tendo de explicar aos onipresentes e  intrometidos olhares tudo o foi feito ou sonhado na noite anterior, o que se fará na próxima, ou até por que se quer alugar um filme numa bosta de melhor locadora da cidade! Sendo negro, estrangeiro, e usando os inevitáveis “t” que Karina usa nas oxítonas, os únicos lugares para mim, com sorte, seriam as motos de carregar gente sem capacete, a graxa de brilhar sapatos, ou traslado de bagagens no único hotel com valetes na cidade (este último, puxa! inequívoco privilégio). Carteira assinada? Qué qué isso senhor? Somos de Lula, não de Vargas!

Talvez seja isso: uma cidade pesada. Uma menina magra me diz, no restaurante do hotel, “afe Maria, se eu fosse de fora num tinha trabalho aqui não” “E o que a senhora acha disso?” “Eu? Olhe, eu sou senhorita, viu? Quer mais gelo?”.

Onde achar o Céu neste horizonte interminavelmente cansativo? Disseram-me: No Largo da igreja há uma locadora de vídeo improvisada em banca de revista, onde há um trio de irmãos que se espremem entre os DVDs a corroborar, pelo degredo dos tempos idos e na memória do frio de São Paulo, aquilo que seus corações já sabiam: preconceito e reticências não ajudam, nem nunca ajudaram, as pessoas de espírito livre. É uma questão de lógica: não poderemos fazer deste país um lugar melhor para se viver enquanto as diferenças forem vistas como impedimentos ao invés de oportunidades.

“Tenho sim, e tá na mão, chefe!”. Não me perguntou de onde venho, nem para onde vou. Racionalmente, pediu-me pela locação um preço um pouco acima da média, para cobrir o risco de qualquer eventual calote. Deu-me um cartãozinho de visitas, disse-me “bom filme”, e voltou a seu trabalho, como fazem as pessoas civilizadas. Afinal, que risco um nordestino ordinário, como tantos que se vêem no Brás ou na estação da Sé, pode representar para outro nordestino ordinário?

Cálculo atuarial preciso: elemento cognitivo e moral típico dos sentimentos democráticos, e tradicional aliado daqueles que amam a mudança e a prosperidade. Sotaquezinho vagamente paulista, jeito de quem nasceu muito mais pobre do que acha justo terminar a vida. Nessa Iguatu existencial, a necessidade de sobreviver sempre se encontra com o desejo de viver melhor. Não, não é só ganhar o pão… é a atitude altiva de abrir uma banquinha de DVD’s atrevidamente competitiva, e desbancar o velho que está lá desde os tempos em que Luiz Gonzaga andava por aqui, antes mesmo do VHS existir. Nesse caso, alugar DVD a estranhos ou rifar seu próprio corpo para dar de comer ao filho só são diferentes em termos de escala, mas não na origem da atitude.

Aluguel sem ficha, com data de segunda-feira, e de volta à loja de conveniência. Sim, eu sou black, mereço meu Black!

Com o filme numa mão e a garrafa na outra viu-me o velho, sentado desde uma mesinha ao fundo, mordendo alguma coisa. Eu o reconheci com certo desprazer, mas relevei. Afunda aí mesmo, infeliz. A grande e nobre nação cearense há de ser muito mais que um amontoado de cidadãos dessa estirpe!

Ao perceber minha compra “extravagante” paga com um cartão platinum, escutar o português falado em declinações claramente exóticas mas nítidas e definidas, e olhar o filme abrigado na minha mão, gritou lá do seu canto: “ei, o Sr. é de onde, mesmo?” “De longe, Sr., de muito longe daqui”!

______________

E. Tem vinte e três anos, aparenta problemas mentais, e alimenta D., de nove anos, e mais três filhos com o benefício do Bolsa Família. Ela não tem autoridade sobre suas crianças para fazê-las freqüentar a escola, mas a diretora da unidade em que estão matriculados disse-nos, em entrevista, que não informa ao governo as faltas dos meninos, pois essa é a única esperança para aquela família. No dia em que conversamos com ela, E. olhava para o nada, e cobria com um curativo a última agressão que sofreu de seu namorado, viciado em drogas e presidiário.

1 Resposta to “O pé de serra dos outros”


  1. 1 Katarine Araújo 02/05/2010 às 10:21 pm

    Intenso…forte. Tão verdadeiro que dói, tão óbvio que nos cega. Um tanto os meninos cinzas de recife…do brasil…da vida.


Deixe um comentário