Dezenove de cinco

Hoje, muito longe de Aldeota, 10:10. 

Uma senhora gorda e suada, uma plantinha venenosa na caqueira, e o cheiro de alguma coisa ignorada fritando por trás da cortina improvisada. O ar pesa um pouco, e eu não sei se é tontura a sensação que me dá. Pano passado num chão que exala Veja de eucalipto, e eis que um gato cinza desliza de bombordo a estibordo pelo convés do barraquinho abafado.

Duas pessoas moram aqui, mas uma distância mediterrânea as separam; dá para perceber facilmente. E é verdade: foi em Fortaleza, e não em Málaga, que inventaram o terral…  

A senhora traz um ventilador pequeno, e em solidariedade eu começo a suar também. Quantos graus fariam agora neste triste e fragmentado subúrbio? Não sei, e reconheço minha ignorância diante da Bíblia que descansa sobre uma bicama cuidadosamente forrada, enquanto um mp3 pirata, consagrado e monotônico, desfila suas duzentas e tantas faixas pelo monitor da TV.

O senhor é de fora, né?

Sou, sim senhora. Sou do Recife…

Eu não o ganho benefício não, moço… perdeu a viagem. Quase rio, mas não rio.

Eu sei, senhora. E gostaria de conversar um pouco sobre isso. E a conversa segue.

Mulher sozinha, avó de menino que vai a Maracanaú se drogar. Ela não sabe, mas sabe. O canal de Maracanaú, afinal, é logo ali no fim da rua… mais perto que a escola, mais perto que a Igreja, muito mais palpável que o gosto de ver a cria estudar e seguir seu rumo como homem de bem.

Além, muito além, contudo, de sua capacidade de controlar um mundo que não conhece, mas conhece.

A senhora não chora, e a panela começa a queimar. Carne queimada, claro, reconheço o cheiro agora, já com alguma nitidez.

Sai, o gato volta, e um adolescente com cicatriz aparece de cueca, por trás da cortina. Crack? Não sei…. muito magro para sua idade, pele já sem cor, e uma perceptível tremidinha na cabeça, acompanhada de dois ou três sussurros incompreensíveis. Vejo a avó concordar, enxugando a mão numa toalhinha pequena.

Não, não é crack… nenhum registro de coisas sumindo de dentro de casa… pó? Não, muito caro. Cola? Talvez, cola …

Isso é uma fase, né, moço? Espero em Deus que passe. E me passa um pouco d’água, quase morna, em um copo engordurado.

Faço a entrevista, mas tenho alguma dificuldade em me concentrar no roteiro.

Termino e agradeço, não sem declinar polidamente do sincero convite para almoçar.

Nessa hora, o vapor que sobe do chão de pedras me parece fresco. Não há viv’alma na rua.

Em silêncio, entro no carro, ligo o ar condicionado, e me permito balbuciar as últimas palavras do Pai Nosso.

5 Respostas to “Dezenove de cinco”


  1. 1 Katarine Araujo 20/05/2010 às 1:57 pm

    Vou me abster de qualquer palavra, pela minha perplexidade diante da narrativa, e da vossa capacidade de me fazer – creio eu, de fazer qualquer um que venha a ler esse texto – me sentir dentro dessa casa, ao lado de você, dessas pessoas, e dessas sensações. 🙂 divida conosco sempre.

    abraços.

  2. 2 ernani 20/05/2010 às 2:46 pm

    Excelente texto Artur, por algum momento senti sua descrição.

  3. 3 Martha Caldas 20/05/2010 às 8:52 pm

    Maravilha Arthur!
    Como é bom ler o que vc vivencia, chega a nos transportar e ver toda a cena assim como, sentir na pele.
    abraços,
    Martha

  4. 4 Tuza 21/05/2010 às 6:06 am

    Muito obrigado pelos gentis comentários, pessoal. Tem sido uma experiência muito importante, como ser humano e cientista social. Abraços a todos, A.

  5. 5 Joelma Soares 26/05/2010 às 9:17 pm

    Confesso-me atônita com a narração dessa experiência… Reflexiva, agora. Beijo. J.


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