Meditação do Cariri

Seis de Maio, 9:00h.
O velhinho ainda era um rapaz imberbe na tarde em que decepou a cabeça de Lampião com um lance de facão, durante o cerco de Angicos. Explicou: “foi só uma lapada, zupt, e é assim…”
Fiquei matutando se isso era hombridade, ingenuidade ou simplesmente covardia – categorias simétricas e fundamentais, como os lados de um triângulo, nessa grande loja maçônica que é o interior nordestino.
Para se matar alguém é preciso apenas ter uma razão, uma oportunidade, e um instrumento. Razões qualquer um tem, e para quem ainda não tem, qualquer um dá. As oportunidades vêm do excesso de autoconfiança que o de cujus experimenta antes de passar. Instrumentos? Bem, os instrumentos vêm dos portes funcionais, das matérias da imprensa, das calçadas da feira de passarinhos, dos contrabandistas internacionais, do comércio do centro.
O velho tinha os três… na verdade, decapitar lampião era como tirar na loteria. Cortou na segunda vértebra, e virou uma bosta de cabo de polícia aquela merdinha de soldado amarelo. Bosta por merda, claro, era melhor ser funcionário público, do tipo que dá tapa na cara dos outros munido de uma patente que serve, entre outras coisas, para mandar entregar água na casa da quenga, e para fazer fiado no mercantil.
Penso, diante da serra impassível, sobre a dissoluta macheza que haveria em decapitar o cadáver de um homem metralhado pelas costas, numa tocaia. E mesmo mais perplexo: qual é a valentia de se bater na esposa? O que há de nobre em gerar 19 para criar 8? Qual a dignidade em aterrorizar os meninos: “lá vem pai, Chiquin, lá vem pai”?
O velho morreu de câncer na próstata, e sua foto amarelada ainda está na parede da barbearia. Velho e insuperavelmente só, apesar de parte das filhas velarem seu desenlace ao derredor da cama. “Unfe, Unfe… pai morreu…”
Deixou para elas uma pensão vitalícia, concedida pelo Estado, pelo assassinato de um homem e de sua companheira durante o sono. Por isso as filhas, segundo a mais universal das lógicas, decidiram não se casar para não perder o benefício… claro, é melhor gerar bastardos que perder a pensão…
A casa de pai tá lá, e desde 2005, quando mãe morreu, os irmãos desfiam parabelos pela herancinha de porta-e-janela. Facões? Traições? Sertanejos guilhotinamentos, experimentados no interior da sagrada família cearense?
Decerto haverá louros nessa mesmice: o sertão sempre se reinventa quando algum filho (ou neto, ou bisneto) daquele finado velho original, ou de outro velho qualquer, vira prefeito em alguma remota freguesia dos Angicos. Ou do Seridó. Ou das usinas de cana de açúcar das Alagoas. Ou do São Francisco. Ou do Pajeú. Ou mesmo, e novamente, dos longínquos Cariris que cochilam feito cascavel, aqui na minha frente… Que tédio… mas é assim que a história tem se perpetuado por aqui.
Conclamo, então: promotores de justiça, auditores, jornalistas e analistas políticos do Nordeste, uni-vos!
Evitem sempre que os outros tenham razão, e ainda assim corram das circunstâncias. Desse modo, e por isso mesmo, estejam sempre afiados com os meios. Matar ou morrer é fácil, zupt, já dizia o velho.
Palavra. Previdência. Firmeza de caráter. Microsoft Word. 380, vinte e um tiros.

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