Archive for the '1' Category

Sobre pessoas, laptops e papéis…

Fui aos números: a Secretaria de Educação do Estado tem orçamento anual de R$ 2,2 bilhões de reais (dados da LOA de 2009), e um total de 1,9 milhões de matriculados (dados do Censo Escolar de 2006, os últimos disponíveis no site da SEDU-PE), em todos os níveis. Ignorados os valores indiretos – de outras Secretarias de Estado, e de outras esferas de governo, e os erros devidos à eventual evolução no número de matriculados de 2006 até aqui, cada estudante custa ao Estado – leia-se: ao contribuinte – R$ 96,50/mês. Lanche, fardamento, e material escolar inclusos.

Um estudante de ensino médio na rede privada (calculei o ensino médio, no GGE da Abdias de Carvalho) custa ao seu responsável – leia-se: ao contribuinte – em torno de R$ 1000/mês. Lanche, fardamento e material, idem.

Ora, é fato que o Estado precisa investir mais em educação. A relação que há entre desenvolvimento econômico, mobilidade social e qualidade de vida, e educação, é historicamente conhecida, e empiricamente verificada. E também gastar melhor: a efetividade dos gastos da educação precisa ser acompanhada de perto pelos mecanismos institucionais de controle, e pela opinião pública.

Mas por outro lado, também é fato que pagar por vagas na rede pública quando se pagam impostos, e ter de pagar novamente para manter seu filho ou filha na rede privada, é errado, porquanto abusivo e antiisonômico. Não falo de “bitributação” – a qual algum jurista mais afoito poderia pensar em argüir – mas mas basicamente de justiça fiscal. Afinal, é fato que o sistema público, embora majoritário em termos quantitativos, é residual do ponto de vista da qualidade do serviço prestado, e do perfil do egresso: ninguém quer manter seu filho em escola estadual.

Os alunos da rede estadual são mais fracos que os da rede privada não porque sejam naturalmente ignóbeis, mas porque o serviço é bastante ruim. Muito  dificilmente, sua inclusão nas universidades públicas seria alavancada se tais instituições não tivessem adotado (questionáveis) medidas de bonificação pela origem escolar do candidato, no ato do vestibular.

Quando ascende à classe média, confirma Bolívar Lamounier, o pobre quer logo comprar um carro, fazer um plano de saúde e botar os meninos em escola particular… e isso não é por mero mimetismo das supostas elites nacionais, mas basicamente pela disseminada – e precisa – percepção de que os serviços de transporte, saúde e educação públicos são de baixa qualidade.

Ora, amigos, sejamos sinceros: à ausência de dependentes matriculados na rede estadual, ou à forçosa opção pela rede privada, deveria corresponder um reembolso, pelo Estado, ao contribuinte indivdual. Poderia ser um voucher de desconto em impostos estaduais, como no IPVA do ano, ou um depósito em dinheiro, como ocorre nas restituições de imposto de renda.

Ora, propor revisão no formato do financiamento da sacrossanta rede pública de educação? E pode? Pode, sim. Esse é mais um tabu da nossa era de pensamento único. Por isso mesmo, é mais um assunto a ser discutido aqui em Casa.

… e os veados de Allan Sales.

Contemporaneidade  

Allan Sales – 2008

I

Carlos Pena fosse vivo

Acharia tão ruim

Pois seu velho Bar Savoy

Hoje em dia está assim:

– São trinta copos de chope

– São trinta homens sentados

– Quinze deles são michês

– Os outros quinze os viados

II

Na Marim do Caetés

Seria bem diferente

Pois Bar Savoy lá não tem

Tem Marola lugar quente:

– São trinta copos de chope

– São trinta doidos sem rumo

– Quinze deles quando saem

– Vão ali queimar um fumo

III

No Coque e Joana Bezerra

João de Barros Santo Amaro

Já não são copos de chope

Cujo porre sai bem caro:

– São trinta copos de cana

– São trinta cabras lascados

– Vinte nove quando correm

– Porque um foi baleado

IV

Já na praia do turismo

Carlos Pena chegaria

Entocaria o relógio

Celular e a mixaria:

– São trinta louras geladas

– Na areia a diversão

– Mas ninguém encara a água

– Com medo de tubarão

V

Carlos Pena certamente

Vê tudo isso do além

Na Pracinha do Diário

Bem diferente também:

– São trinta, não bebem chope

– São trinta que enchendo a cuia

– Trinta vezes dez por cento

– E um pastor diz aleluia.

O chopp de Pena Filho…

Carlos Pena Filho – 1952

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Rosas, Margaridas, Camélias, e outras flores…

O tema da prostituição sempre foi instigador para mim:  primeiro Lúcia, de José de Alencar, mais tarde Margarida, de Alexandre Dumas, e depois Sonja, de Dostoievski… nelas, pureza e miséria se misturavam, e isso para mim, de tão humano e real, era simplesmente apaixonante.

Estive na zona pela primeira vez com a idade de dezenove anos, para assistir ao show da “Madona” local numa boate chamada Zona Franca, no Recife Antigo. Após alguma negociação, minha namorada, com então vinte anos, decidiu me acompanhar.

A estrela da noite já tinha ultrapassado a marca balzaqueana dos trinta anos, rugas nos olhos, corpão definido em academia, e um jeito triste embalado pelo Like a Virgin de sua performance. 

Tinha fama de não falar com os frequentadores da boate caso não fosse insistentemente convidada, e apenas o faria se tivesse gostado da figura que a convidasse. Para mim, acompanhado e completamete inexperiente em matéria de putaria, era o show ideal.

Madona fez seu número, despiu-se e deitou por sobre algumas mesas, onde uns homens gordos riam escondidos atrás de garrafas de Buchanan’s.  Sua vulva imberbe contrastava com a maquiagem pesada do rosto, numa mistura de fascínio e terror.

O texto de Wainer lembrou-me de Madona, e das muitas garotas de programa já encontrei nas searas vida. A elas, e a todas as mulheres que conhecem o prazer e o sacrifício, meus cumprimentos! 

  

Puta é o caralho, por João Wainer

http://www.joaowainer.com.br/publish/puta/Site_2/puta.html

O nome verdadeiro é Maria Aparecida da Silva, mas na Central do Brasil é conhecida por Márcia. Aos 42, trabalha como faxineira de manhã em uma firma e prostituta a tarde, em frente a estação de trem mais movimentada do Rio de Janeiro.

Era gostosa, mas depois de tantos anos trabalhando como puta já não é mais. Assim mesmo ainda tem seus clientes fiéis, que não dispensam uma foda “completa” por R$35,00 depois de um dia de trabalho pesado. Como não é mais jovem, quem chegar com R$ 15,00 leva. São pedreiros, pintores, taxistas, eletricistas, porteiros. Usam o corpo de Márcia pra aliviar as tensões do cotidiano embaçado que gente pobre tem.

Cida mora em Itaguaí, zona norte do Rio, a 70 km do seu local de trabalho. De busão são quase duas horas.

A casa é simples, quarto e sala sem acabamento, tijolo baiano a vista, chão de terra e cimento, móveis improvisados, cortinas ao invés de portas e um retrato de Jesus na parede.

Um pedaço de bombril na antena ajuda a diminuir o chiado do capitulo de Malhação que as crianças assistem na televisão pequena sobre o armário. Como toda casa pobre, falta tudo mas sobra dignidade. Café, bolacha de maizena e Dolly sobre a mesa pra receber os convidados.

Mora ali com seus filhos, André, 18, Camila, 22, seus netos Wesley,5, Ketheleen,3, a mãe alcoólatra Idalina e a filha adotiva deficiente mental Verinha.

Cida sustenta a casa sozinha. Não fosse o dinheiro dos programas, provavelmente o filho estaria no crime, a filha na prostituição, a mãe alcoólatra pela rua gritando absurdos abraçada a uma garrafa de pinga e só Deus sabe onde estariam os netos e a filha adotiva deficiente mental.

Puta é o caralho, Cida é uma guerreira. Foi para o sacrifício e manteve na unha vermelha a família unida. Foi capaz de perder sua dignidade pra preservar a dos seus. Quem seria capaz disso? Você seria?

Ao conhecer essa mulher, tive a certeza absoluta de que as mulheres são superiores aos homens.

Pensei nos defensores da moral e bons costumes dos programas vespertinos de TV, nos hipócritas que bradam absurdos nos palanques, no horário eleitoral gratuito, no Datena, no Faustão, nas rádios populares. Sinto o gosto de vômito na garganta. Quem é mais puta? Quem é mais desonesto? Quem é o verdadeiro filho da puta?

Com olhar forte e digno, Cida tem a cabeça erguida e a hombridade de quem sabe que cumpre o seu dever com rara honestidade. Quem hoje em dia pode dormir tranqüilo assim?

Textos sobre o assunto: 

Mariposas que trabalham – Belo Horizonte

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7356 

A bela adormecida – Goiânia – UFG

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822007000100010&tlng=en&lng=en&nrm=iso 

Do poder às margens… – Recife – UFPE

http://www.bdtd.ufpe.br/tedeSimplificado//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3059 

Entrevista com Gabriela Leite (Daspu)

http://www.brasilwiki.com.br/noticia.php?id_noticia=9853 

Notas do Criptotolitarismo, ou o Conselho da Chefatura de Polícia

Em 1991, eu e Chico Monteiro decidimos escrever sobre os fundamentos da democracia no ocidente. É que nossa criteriosa professora de português, Xênia Luna, havia elogiado redações que escrevêramos em sala de aula, e eu me sentia, sinceramente, preparado para receber um Pulitzer.
Chamei Chico e sugeri: “estamos prontos, vamos denunciar a falta de democracia na Escola! O revolucionário não espera condições, mas as cria! Como é que o diretor está no poder faz não sei quanto tempo, e nenhuma eleição foi jamais realizada? Isso, óbvio, é resultado de sua relação com Marco Maciel, e os outros torturadores de ditadura militar. Mas o tempo deles já passou, por isso, pau neles! Vamos expor as pústulas do sistema!”
Chico, que tinha mais juízo que eu, hesitou um pouco, e melhorou o texto. Ficou mais bem escrito que muitos dos editorais de alguns jornais caros que a esquerda mantinha em circulação.
Havia um jornalzinho de circulação interna na ETFPE – esqueci o seu nome – que tinha informações da direção e um discreto espaço para os alunos publicarem seus poeminhas de amor, tecerem seus elogios às grandezas do Brasil – é verdade, ainda havia isso nesse tempo – e, claro, chaleirarem a direção dizendo como era magnânino ter nos reservado um espacinho para livre expressão – isso nunca deixou de haver. Ao seu “corpo editorial”, uma funcionária do gabinete que já esperava a aposentadoria, apresentaríamos nossa bombástica denúncia.
Escrevemos uma vez, lemos, passamos a limpo, e fomos lá entregar, já no fim do expediente. Ora, o manifesto do PSTU, que foi escrito meses depois, era mais comedido nas palavras. Dizíamos alguma coisa como “um feto foi encontrado na lixeira do banheiro de um dos prédios do campus. Era nossa democracia, abortada antes de ver a luz, e ele, o diretor, é o grande responsável pela morte da esperança. (…) Renuncie, diretor, e dê uma chance à paz”.
Não precisa dizer que não publicaram nosso texto. No dia seguinte, fomos chamados à direção levar um acocho. Cabeça baixa e gagueira lembravam que por trás da altivez dos jovens articulistas havia apenas dois meninos de 15 anos, que precisavam do ensino da escola para se habilitar ao mercado de trabalho, e não podiam ser expulsos. O diretor, cheio de perfume, estava lá; um assessor se encarregou de nos passar o carão, enquanto o titular da cadeira só balançava a cabeça, negativamente.
Mas sabem, não foi a represália, nem a ameaça de expulsão, que me fez desistir da breve idéia de prestar vestibular para Jornalismo. Foi o fato de não ter tido a chance de ser lido, de ser avaliado pelo público.
Diferentemente da literatura ou da filosofia, não há bom jornalismo sem leitores. A repressão seguia em frente enquanto nós fomos silenciados, e ninguém ficou nem sabendo do caso.
Crescemos, Chico foi mexer com computadores, e vive bem em Natal. Eu sou professor e funcionário público.

Em tempo:

1. A expressão criptotalitarismo é desenvolvida com fluência nos textos de Sérgio de Biasi e Gustavo Biscaia de Lacerda
http://www.oindividuo.org/2009/12/16/cripto-totalitarismo/
http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2009/09/aforismas-sociologicos-iii.html

2. O conselho da Chefatura de Polícia é uma passagem do romance “A emparedada da Rua Nova”, de J. M. Carneiro Vilela.
http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=22024&cat=Artigos&vinda=S

3. Vergonhoso programa do governo Lula que quer estabelecer limites à liberdade de imprensa, em nome da defesa dos direitos humanos. Isso empurraria o jornalismo independente do país para a trincheira dos blogs, como ocorre em Cuba e na Venezuela. Jornalista bom, afinal, é jornalista calado, censurado, emparedado? Triste época para a América Latina.

Jalapeños ao Capibaribe

Havíamos terminado e entregue um trabalho do professor John Mirowski, e fazia frio no inverno texano de 2003. Eu, morto de cansado que estava, decidi fazer o jantar para espairecer. Fui a um food mart e comprei uns steaks, baguetes, macarrão noodles, tomates e um tal de jalapeño pepper, que parecia um pimentãozinho verde inofensivo, bem mirradinho. Separei parte da carne dos ossos, temperei com alho, salsão e molho sriracha, e fiz um caldinho.
Depois de picar a carne cozida do caldinho (uns 400g), os tomates e os jalapeños (três ou quatro de cada), passei-os rapidamente na manteiga, a fim de dourar a carne e deixar os vegetais semi-crus. Cozinhei o macarrão por não mais de quatro minutos, e estava pronto o jantar.
Já tinha chamado Ernesto e Bráulio desde a Universidade, e confirmei batendo na porta ao lado (Ernesto morava next door, e se encarregou de chamar Bráulio, no andar de cima). Depois de havermos tomado o caldinho com parte da cerveja que um deles trouxe, e falado sobre o Brasil, as mulheres, e os republicanos do Texas – não necessariamente nessa ordem – fomos jantar.
Ninguém conseguiu comer. Confundi o jalapeño com um green peper ordinário, o que é uma desídia com a rica culinária tex-mex, e uma agressão contra o paladar brasileiro médio; chamei o acidente de Jalapeños ao Capibaribe, para caçoar de minha inépcia.
Quando já em Recife, anos depois, refiz a receita com paleta bovina, pimentão verde e molho tabasco. Substituí a cerveja Lone Star por uma garrafa de Miolo Merlot Reservado. Ficou, sem falsa modéstia, muito bom.


Categorias