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A queda das longarinas

Fortaleza, 2010.

Sol, calor, mulheres sem bunda e homens olhando para o chão. Ruas sujas e esvaziadas. Pedintes, lugares turísticos cheios de nativos, lojas fechadas, ambulantes desistimulados apregoando seus bregueces para ninguém. O vazio entre os prédios inspira menos consciência urbanística que esfriamento do mercado imobiliário.
Allez, padeiros e porra, Cid Gomes! Liberdade não brota do bolso se sua semente não está na alma!

P.S.: Como gift, Lúcia Menezes nos brinda com a poética e profética Longarinas, de Ednardo. Veja aqui.

Humeanas

I.

Chego aos trinta anos, e me pergunto se outros guardam da infância lembranças como eu guardo. Menino mais velho de uma família urbana típica, duas crianças, na maior parte do tempo eu inventava jogos e brinquedos para uma só pessoa, em geral orientados ao teste dos pueris contrafactuais que eu alimentava sobre o mundo dos mais velhos. Aos quatro anos, arranquei uma válvula de TV com as mãos e quase fui eletrocutado. Aos seis, adaptei um dispositivo de bomba-relógio usando como estopim um pedaço de repelente de mosquitos que, após cuidadosamente preparado e “acidentalmente” implantado numa janela vizinha, recusou-se a explodir: durante a noite de vigília “científica” choveu, e eu havia esquecido de proteger o pavio contra água. Na manhã seguinte, a velha moradora da casa alimentava as galinhas do quintal, como sempre fazia, e eu, subitamente consciente do perigo no qual envolvera a mim e a outros,  segui para a escola com o coração dividido:  feliz por não lhe ter brindado com o susto que adiantaria a morte, mas triste por ter sido incompetente com meu engenho. 

Já na meninice, então, passei a desconfiar daquilo que, tempos depois, descobri serem os chamados de mecanismos de causação. Inclinado ao ceticismo, desacreditei do princípio segundo o qual para cada raio de luz supõe-se uma fonte luminosa,  e que para cada comando de voz supõe-se um autor (e, claro, uma obrigação de fazer…). Desconfiava, de maneira ainda um tanto confusa, que tal relação de causa e efeito surge na nossa cabeça logo na primeira vez em vimos  o fenômeno acontecer, e que, organizando temporalmente o ocorrido,  associamos a experiência sonora da voz à pessoa que a emitiu. Posteriormente, tal regra de associação passa a operar em qualquer experiência semelhante,  ajudando-nos a imaginar um vínculo ontológico entre a ocorrência anterior e a posterior: como no tempo um fenômeno qualquer costuma suceder a outros, concluímos que eles estão causalmente ligados.

Tempos mais tarde, e muitos reveses depois, vim conhecer na universidade a crítica ao princípio de causalidade elaborada por David Hume, no século dezoito. Tal crítica, tão simples quanto famosa, foi importante ao desenvolvimento da inteligência ocidental a ponto de Imannuel Kant, o grande pensador alemão, afirmar que foi Hume quem lhe despertou de seu “sono dogmático”.

II.

Hume diz que a ligação que estabelecemos ao supor causalidade entre acontecimentos não provém da razão, e que somos, assim, menos “racionais” do que gostaríamos. O fato de esperarmos certos efeitos de alguns fenômenos, seja por hábito ou por observação demonstrativa, faz com que vejamos o mundo de maneira fatalmente singular e contingente. Para garantir sua sobrevivência em meio ao turbilhão dos sentidos, o ser humano coloca ordem nas coisas, e as estrutura em sua consciência segundo a sua experiência pessoal e as práticas culturais do grupo em que se insere.

A vida prática, irmã dileta das ciências naturais, tem, assim, uma base fundamentalmente irracional, posto que utilitarista, emocional, e orientada à resolução de questões imediatas. O que estaria em jogo, então, não seria a verdade dos fatos, mas antes a sobrevivência individual ou, num nível mais sutil, a realização dos desejos de cada sujeito: na ávida busca pelas coisas, minimizamos a importância do logos e abdicamos dos rigorosos processos de descoberta da verdade (heurística, para usar um termo técnico) em favor das rotinas de argumentação e convencimento.

O próprio Hume, que apontou para a falta de credibilidade objetiva de nossas crenças empíricas, parece sugerir uma saída deste dilema. Ele reconhece a existência objetiva das causas de fenômenos de nossa experiência prática ao dizer que mesmo um cético precisa aceitar a existência objetiva de um corpo contundente, de uma transformação físico-química ou de um estado emocional.  Sua crítica orienta-se, então, à noção de percepção experimental da causalidade,  ao estabelecer que nossas percepções sobre o mundo objetivo guardam apenas hipóteses,  prováveis em maior ou menor grau. A causalidade, assim, não seria objetiva (já que a pura sucessão temporal não estabelece relação necessária entre fenômenos), da mesma forma que, não necessariamente, “causas” semelhantes produzirão os mesmos efeitos. Na ciência, como na vida, a certeza irredutível deve ser arejada pela dúvida inteligente, e pela reserva de probabilidade. Afinal, surpresa, expectativa, suposição e verificação são fenômenos tipicamente humanos e subjetivos, e não moram nas coisas em si.

III.

Nunca soube que Hume tivesse especial interesse na vida sentimental das pessoas de sua época: ele, de fato, parecia muito mais interessado na reconstrução da teoria clássica do conhecimento que nas desilusões amorosas das senhoras escocesas daquela Bretanha assustada pela ditadura de Cronwell. Nem sei se ele se casou, se criou seus filhos, ou se costumava caminhar à tarde nos agradáveis verões de Edimburgo.

Talvez incidentalmente, portanto, Hume explicou-me muito sobre a vida das pessoas comuns, daquelas que amargam desilusões, têm medo da solidão, da pobreza, da doença, ou que guardam no peito ressentimentos contra aqueles que já lhes fizeram sofrer (bem, o grupo inclui quase todo mundo!). Em nossos relacionamentos, os desencontros costumam brotar do fato de que cada um de nós é formado a partir de uma coincidência singular de certo grupo de experiências intersubjetivas – partilhadas com outros membros dos vários grupos a que pertencemos – e com outro conjunto de experiências idiossincráticas, pautadas na nossa vivência íntima, e na nossa percepção pessoal das experiências pela quais passamos.

Essas duas dimensões – intersubjetivas/sociais e idiossincráticas/íntimas – nem são estanques, nem facilmente distinguíveis, e por isso mesmo formam o núcleo central daquilo que somos; é aqui que registramos nossa memória biográfica, nossos costumes, guardamos nossos valores, gostos e prioridades. É também neste espaço vital, mas impreciso, que humeanamente inferimos relações causais para entender nossas experiências pessoais, e construímos um cinturão protetor cheio de reações condicionadas: proteja-se ao ver um cachorro brabo em querendo atacar; evite pimenta vermelha para não magoar a úlcera; ao ouvir uma buzina de carro, step back para a calçada, fuja de mulheres com olhos de cigana oblíqua e dissimulada, e assim por diante.

IV.

Quando, no contato diário, experimentamos a natural discordância entre a nossa percepção das coisas e a percepção das outras pessoas, tendemos a querer convencer os outros da veracidade de nossa percepção – afinal, nossa percepção empírica mora no mesmo lugar onde moram coisas ainda mais fundamentais, como a nossa auto-estima e identidade pessoal. Via de regra, cada uma das partes apresenta a sua versão acreditando na objetividade da descrição, mas inevitavelmente agindo e julgando com os seus próprios – e singulares – valores.

Considerada a base utilitarista da vida cotidiana, normalmente nos permitimos dialogar desde que o outro admita, ao término da conversa, que nossa percepção corresponde à verdade objetiva, ou seja, pautada nas coisas mesmas. Apesar de todo o recurso a critérios de argumentação e arrazoados, esse é basicamente um processo de autodefesa, pois queremos evitar que os valores e crenças que guiam nossas rotinas e prioridades sejam ameaçados em sua veracidade  e transcendência (leia-se: legitimidade). Daí o fato de, não raro, convertermos a priori diálogo em disputa, debate em conflito, e continuarmos vivendo, séculos depois de Hume, como quem está em permanente contenda, onde o preço do fracasso é a morte, ou a humilhação. Viveríamos assim empobrecidos porquanto  predeterminados – como bem observou Schopenhauer – a mostrar que os nossos argumentos estão certos, esquecendo da preocupação da verdade em si mesma.

Talvez tal intensa preocupação com o sucesso, e com o prestígio no grupo em que nos inserimos, bloqueie parte de nossa capacidade de discernir. Exatamente como fazem os empiristas mais ingênuos, ao priorizar o efeito percebido e não a investigação da causa suposta, rapidamente deduzimos as intenções dos outros a partir do impacto de suas atitudes sobre nós – supomos o antecedente pelo conseqüente, e caímos na mais elementar falácia formal – o que, tanto na vida como na ciência, costuma levar ao erro e à generalização apressada. Querendo ser inteligentes, optamos pela estupidez.

Pior ainda: quando o impacto da ação do outro sobre nós é grande e negativo, procedemos com a mais institiva das “lógicas”, e chegamos à “conclusão óbvia” de que o outro agiu muito mal-intencionado. Silogismo consecutivo: más intenções significam mau caráter (outra conclusão imediata). Nessa situação, tanto nós como nossos pares, como se fôssemos bichos acoados, entramos num jogo de perde-e-ganha, assumimos posturas de conflito engendradas na suposição recíproca de nossas “más intenções”. Supostamente racionais, diálogos assim costumam ser dominados pela irracionalidade típica da vida prática, e dificilmente percebemos a degeneração afetiva e moral produzida pelo nosso próprio comportamento.

 (Verão de 2006)

No Rio, um novo Orfeu do Carnaval

30/01 – Allegro Crescendo
O controle estará por todas as ruas da cidade

Urinar nas ruas do Rio de Janeiro pode levar o folião para a cadeia durante os dias de Carnaval. Segundo o Jornal O Dia, o efetivo da Guarda Municipal do Rio está orientado para levar preso em quem estiver urinando em via pública e responderá por ato obsceno. O detido poderá pagar o mesmo que um dono de animais paga por não recolher as fezes deixadas das ruas, o estimado entre RS 28,29 reais e R$ 2.829,77 reais.

A recomendação vem da Secretaria Especial de Ordem Pública, que no ano passado recebeu inúmeras reclamações sobre a situação. Ainda segundo o jornal, este ano serão instalados 3.200 banheiros químicos em toda a cidade (quatro vezes a quantidade de banheiros no ano passado), justamente para evitar que os foliões respondam por processos criminais. Estima-se que até o dia 21 de fevereiro, serão 641 desfiles e uma multidão de 2,49 milhões de pessoas por dia.

17/02 – Andante Rubatto
Na quarta de Cinzas, a Democracia que vem do xixi…

23/2 – Largo, ma non troppo

(Texto de Mara Telles, desde Belo Horizonte)
Lamentáveis os atos do prefeito do Rio de Janeiro – Eduardo Paes – punindo o cidadão comum para salvar o desejo da zona sul carioca por um choque d’ordre. Mas, a ordem é obrigação somente da “patuléia”, no caso do Rio, do povo que desce o morro.

O detalhe do imbróglio é que o PT, apesar de acertadamente ter apresentado um programa mais à esquerda em seu último Congresso, acaba por se aliar a todo tipo de gente, inclusive aos mesmos que botam o bloco da polícia na rua para correr atrás dos foliões mijões. Todo o programa da esquerda no Brasil, atualmente, se resume à justiça social – o que é absolutamente necessário e não é pouca coisa!. Mas, a questão da incorporação dos valores do morro pela gente do asfalto, a diversidade democrática, a cultura do cidadão comum e o diálogo para além da clivagem Estado/Mercado, não foram ainda temas incorporados ao debate de nenhum dos candidatos de plantão.

Não passa nada: a esquerda brasileira nunca foi lá muito democrática – salvo honrosas exceções. De resto, também a direita jamais deixou de se pautar pelo ranço autoritário. Um certo governador aboliu os tabagistas por canetada e os humilha cotidianamente, obrigando-os a exercer seu direito ao vício somente após as faixas amarelas, pintadas nas calçadas, como a separar os cidadãos comuns dos quase-marginais. Terão escolhido o amarelo para alegrar a metrópole gris, nestes dias em que as enchentes castigam a cidade?

No patropi, que hoje exibe orgulhosamente o título de oitava potência mundial – pouco sobra para o debate, sobretudo numa eleição que toma caminho plebiscitário, restando ao eleitor apenas se posicionar “contra” ou a “favor” do Nosso Guia.

É a economia, estúpido!

Sobre pessoas, laptops e papéis…

Fui aos números: a Secretaria de Educação do Estado tem orçamento anual de R$ 2,2 bilhões de reais (dados da LOA de 2009), e um total de 1,9 milhões de matriculados (dados do Censo Escolar de 2006, os últimos disponíveis no site da SEDU-PE), em todos os níveis. Ignorados os valores indiretos – de outras Secretarias de Estado, e de outras esferas de governo, e os erros devidos à eventual evolução no número de matriculados de 2006 até aqui, cada estudante custa ao Estado – leia-se: ao contribuinte – R$ 96,50/mês. Lanche, fardamento, e material escolar inclusos.

Um estudante de ensino médio na rede privada (calculei o ensino médio, no GGE da Abdias de Carvalho) custa ao seu responsável – leia-se: ao contribuinte – em torno de R$ 1000/mês. Lanche, fardamento e material, idem.

Ora, é fato que o Estado precisa investir mais em educação. A relação que há entre desenvolvimento econômico, mobilidade social e qualidade de vida, e educação, é historicamente conhecida, e empiricamente verificada. E também gastar melhor: a efetividade dos gastos da educação precisa ser acompanhada de perto pelos mecanismos institucionais de controle, e pela opinião pública.

Mas por outro lado, também é fato que pagar por vagas na rede pública quando se pagam impostos, e ter de pagar novamente para manter seu filho ou filha na rede privada, é errado, porquanto abusivo e antiisonômico. Não falo de “bitributação” – a qual algum jurista mais afoito poderia pensar em argüir – mas mas basicamente de justiça fiscal. Afinal, é fato que o sistema público, embora majoritário em termos quantitativos, é residual do ponto de vista da qualidade do serviço prestado, e do perfil do egresso: ninguém quer manter seu filho em escola estadual.

Os alunos da rede estadual são mais fracos que os da rede privada não porque sejam naturalmente ignóbeis, mas porque o serviço é bastante ruim. Muito  dificilmente, sua inclusão nas universidades públicas seria alavancada se tais instituições não tivessem adotado (questionáveis) medidas de bonificação pela origem escolar do candidato, no ato do vestibular.

Quando ascende à classe média, confirma Bolívar Lamounier, o pobre quer logo comprar um carro, fazer um plano de saúde e botar os meninos em escola particular… e isso não é por mero mimetismo das supostas elites nacionais, mas basicamente pela disseminada – e precisa – percepção de que os serviços de transporte, saúde e educação públicos são de baixa qualidade.

Ora, amigos, sejamos sinceros: à ausência de dependentes matriculados na rede estadual, ou à forçosa opção pela rede privada, deveria corresponder um reembolso, pelo Estado, ao contribuinte indivdual. Poderia ser um voucher de desconto em impostos estaduais, como no IPVA do ano, ou um depósito em dinheiro, como ocorre nas restituições de imposto de renda.

Ora, propor revisão no formato do financiamento da sacrossanta rede pública de educação? E pode? Pode, sim. Esse é mais um tabu da nossa era de pensamento único. Por isso mesmo, é mais um assunto a ser discutido aqui em Casa.

Papo de criança, de comida e de dinheiro

Maio de 2007.

Joelma grávida e de repouso, eu fiquei de fazer o jantar. A gerente de banco e a obstetra combinaram, e felizes são esses momentos em que a precisão se encontra com o prazer, não necessariamente nesta ordem.

Ameaça de aborto, descolamento de placenta, juros e poupança, melhor não pensar nisso em pleno sábado. Na mente, a decisão de ganhar dinheiro, comprar um apartamento decente, essas coisas, e eis que um ex-amigo, ex-PSTU, e quase ex-empregado na pefeitura petista do Recife, disse ao telefone: se preocupa não, rapaz! Minha mulher está viajando, na luta! Vamos para minha casa, na beira-mar do Pontal da Ilha, para tomar scotch… lá tem muito J. W. Red, e umas negras novinhas doidas por homens calvos!

Não bati em ninguém, e de voto o terceiro escalão não precisa. Lutei o bom combate, guardei a fé, e ri. Monstro! Como é que um sujeito de bem vira um safado desses?

 – Brigado, véi. Cuidado só com o Conselho Tutelar, com a consciência, e com o inferno!

Menino ou menina? Nem para mim, nem para o cara, importava! Eu queria apenas um bebezinho saudável; o cara, um buraco apertado para enfiar.

Perturbado com a proposta, fui à padaria La Roque, do meu querido Jardel, e lá havia chegado do interior umas mantas de carne de sol com lomos de mais de dez centímetros de altura.

Comprei quilo e meio, e duas baguetes de pão italiano. Fatiei, com a faca de abrir bucho que havia trazido de Arcoverde, um palmo em tiras de 0,8 cm,  e fiz alguns filés.

Pus 800g na bacia de leite, e fui tomar banho… uma hora, e alguns mg. de progesterona depois, voltei.  Enxaguei, e pus de volta numa bacia de leite Cilpe (leite C, ou integral) para largar o sal.

Assei na chapa, e quando estavam douradinhos os steaks, deixei dormir em uma tigelinha com saquê Azuma Kirin temperado com um copinho de suco de limão, por 40 minutos.

O arroz fiz selvagem, puxado na manteiga de Bezerros. Cozinhei também umas batatas graúdas, peladas, no microondas, o que fiz acompanhar com mostarda dijon. Como em qualquer subúrbio, faltava cogumelo shitake, que eu não tive tempo de providenciar.

Para acompanhar, Beaujolais Nouveau 2004 (pode ser 2005), Gamay como a maioria dos Beaujolais. 18ºC, 12 minutos de freezer. Tomei sozinho: mulher gestante, e consciente, não toma!

O prato é muito bom! De resto, durmam, filhos da puta, e durmam muito! Melhor assim, pois a polícia e o Ministério Público, que caçam suas taras, costumam bater às portas às seis da manhã. Eu, ansioso, segui nos meses seguintes cozinhando sopa e carne de sol, esperando minha pirralhinha, linda!

Helena chegou em 2007. Heitor ou Stela chegarão em 2010. Se Deus quiser, poderão crescer num Brasil melhor!

Elite ruim, sim senhor… pobre Latinamerica.

Quer saber?

A polarização esquerda-direita costuma servir, em termos ideológicos e eleitorais, muito para poucos, e muito pouco para a maioria. E isso será muito ruim para o país que, tendo incorrido nesta armadilha em sua juventude democrática, não saiba sair dela depois da conquista da estabilidade política. No nosso caso, a tal visão de mundo left-right (droite-gauche, pour les nostalgiques) já serviu, no passado, à bem avaliada direita de Médici, e serve hoje à igualmente bem avaliada esquerda de Lula. Foi muito ruim para o brasileiro médio da década de 70 – que aspirava por democracia e melhores condições de vida, e recebeu ditadura e inflação –  e continua terrível agora – quando o mesmo sujeto aspira, mais amplamente, por desenvolvimento econômico e social, redução nos impostos e ética na política. Em minha pobre leitura, à distância dos Andes e do calor das ruas de Santiago, pois já faz dez anos que não vou por lá,  o Chile sabiamente desistiu de tal bisonhice do século 20.

Parece-me que o texto de Valter Pomar (abaixo, e no link), que é um sujeito muito dado a manifestos e convocações à luta, revela, ao contrário, uma postura saudosista dos anos 70 do século passado, quando muitos de nós nascia, e dava os primeiros passos (só não sei ainda, pela sua truculência, se o cara está à “direita” ou à “esquerda”). 

Para Pomar há sempre uma “Grande Batalha” acontecendo… lembro-me então do menino que fui, e que lia, no fim dos anos 80 numa Campina do Barreto onde faltava tudo menos dignidade, o texto de Orwell.  Posso dizer, sem peso de consciência: puta que pariu!

Há em Pomar uma injustificável torcida por um futuro muito pior que aquele que eu desejo para o mim e para meu país, caso o resultado das urnas seja adverso ao apregoado pelo seu (nosso, quicá?) partido. Ameaça? Ah, Pomar… o delegado Fleury era muito mais competente em ameaçar…

Quer dizer que, se o Brasil não votar “em nós”, “já sabe”? Vai mesmo acabar o Bolsa-Família, o Vale-Bandido, e outros presentinhos da espécie? Não brinca….

Sinto que a elite do PT, que teve outrora íntima sintonia com a classe média, confirma lamentavelmente, pela sua atitude, que o que há em todas as sociedades é uma luta constante entre a elite no poder e o grande grupo dos que são dele excluídos. Não seria, então, uma luta de classes, ou uma maniqueísta luta entre os “esquerdistas do bem” e os “direitistas do mal” que moveria a história humana, mas uma real e impiedosa luta de elites, que não se extinguiria nem se fossem extintas todas as classes sociais. Pelo contrário: a “luta de classes” dos marxistas, assim como a antiga luta pelos “interesses nacionais” dos militares da ESG, escamoteiariam a real luta que ocorre em busca do poder, uma luta pragmática em pela ocupação de espaços e pelo controle de recursos. Do mesmo jeito que choviam casos de favorecimento e uso da máquina na época de FHC, não são raros os casos de corrupção no governo atual divulgados pela imprensa. Em ambos casos, as respostas do governo – quando os casos são/eram respondidos – é que se trata de denuncismo puro e simples.        

Manter a sociedade dividida em classes é, dessa maneira,  também interesse da “esquerda constituída” por várias razões. Dois de seus principais interesses nessa estratificação cruel são 1. o fato de que apenas a existência de pronunciada de pobreza material e espiritual na população justifica a tradicional retórica “de esquerda”, pois confere enraizamento social ao seu discurso, e lhe permite o alinhamento estratégico de sindicatos e de algumas entidades da sociedade civil (o controverso MST entre elas), e 2. ainda mais estranho, e desonesto, é o fato de que a condição de “liderança de esquerda” representa para seus líderes um canal de acesso aos estratos sociais superiores à sua condição de origem. “Liderança popular/ de esquerda”, é hoje, ao lado de jogador de futebol e pagodeiro, um efetivo mecanismo de mobilidade social. Um dos interesses opera no atacado, o outro, no varejo, e o resultado é um só: “a luta de esquerda precisa continuar”, “a mudança continua”, etc.

Olhem, amigos, para o Chile: tudo o que podia se esperar de Michele Bachelet – uma líder política séria – diferentemente de José Genoíno e J. R. Arruda – e da Concertacíon foi feito ao longo de 20 longas primaveras. Em geral, bons governos, adequados ao seu momento histórico e à sua missão de conduzir o país de volta à estabilidade democrática.  Ora, se é de fato assim, apenas um projeto “conservador de esquerda” – e defensor dos interesses de elites políticas, à Michells, que são muito mais orinetadas aos seus interesses particulares que aos difusos interesses nacionais –  podia dizer que Piñera não era a melhor alternativa para o momento chileno atual. O empresário era o único entre os candidatos que reconhecia que uma política de estímulo à produção e ao emprego, ancorada na defesa radical das liberdades civis ao invés da ampliação dos já pesados benefícios sociais, poderia manter a condição de destaque do país no continente.

Conduzi, e tive acesso aos resultados de, algumas pesquisas qualitativas que revelam que o cidadão recifense (e brasileiro) típico não é de direita nem de esquerda; talvez seja a favor ou contra o governo, ou a favor ou contra um ou outro candidato. No caso do Chile, o país mais próspero da AL, acredito que o eleitorado chegou a um nível de maturidade política no qual a vergonha da figura, e do infame período de Pinochet, não deve definir que grupos democráticos, orientaods ao mercado e à valorização da iniciativa individual, sejam vistos como responsáveis pelos abusos dos seus pretéritos ditadores. Piñera, que de acordo com seu staff de campanha não é “de direita” nem “de esquerda”, não deve se envergonhar por não ter sido preso ou torturado, e por se posicionar altivamente como uma alternativa à Concertacion. Ela, de esquierda, provavelmente deixaria o Chile muito parecido com a Argentina se governasse o país mais uma vez, mas preservaria rica e poderosa a sua elite dirigente.

Intimamente, neste sábado de Galo da Madrugada, acho que não há mais, se é que já houve, “direitista” ou “esquerdista”, no Brasil. Tem, sim, gente boa e gente ruim, e a maior parte da elite dos “ruins” já governou nos últimos 50 anos. E os bons, lamentavelmente, estão rareando.

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A batalha do Chile

Por Valter Pomar, secretário de relações internacionais do Partido dos Trabalhadores

A oposição de direita, no Brasil, está exultante: a eleição chilena seria a demonstração de que é possível derrotar uma candidatura apoiada por um governo bem avaliado por mais de 80% da população.

A direita européia também está contente: a eleição de Piñera (e, antes dele, do presidente do Panamá) demonstra que o modelo sarkozy-berlusconiano está fazendo escola. Filhote do pinochetismo e enriquecido pela privataria, Piñera é uma demonstração do que os capitalistas entendem por “igualdade de oportunidades”.

A direita latina e norte-americana está igualmente feliz: derrotados desde 1998 na maioria das eleições do subcontinente e recém-derrotados nas disputas presidenciais ocorridas no Uruguay e Bolívia, os conservadores podem apresentar o caso chileno como demonstração de que é possível reverter, nas urnas, “civilizadamente”, sem golpes, a hegemonia da centro-esquerda sulamericana.

Mas felizes mesmo estão os “gorilas” chilenos, que comemoraram ruidosamente, inclusive agitando nas ruas fotografias do falecido ditador, a derrota da Concertación. É a primeira vez, desde a década dos 1950, que a direita chilena consegue maioria eleitoral.

Eles têm motivos para felicidade. E a esquerda deve botar as barbas de molho.

Em primeiro lugar, porque a vitória de Piñera fortalece o bloco de governos alinhados com os Estados Unidos e opositores da integração continental. Colômbia e Peru ganham, assim, um aliado importante.

Em segundo lugar, porque está vitória não é um fato isolado. Ela faz parte de uma contra-ofensiva desencadeada pela direita latino-americana, apoiada pelo governo dos Estados Unidos e pela direita da União Européia. Esta contra-ofensiva inclui os ataques contra os “elos fracos” da rede de governos progressistas, como é o caso de Honduras; inclui o fortalecimento e a extensão da presença militar estado-unidense na região, a exemplo das bases na Colômbia e da IV Frota; e inclui uma provocação permanente contra a Venezuela.

Em terceiro lugar, mas principalmente, porque a derrota chilena foi produto combinado dos acertos da direita, com os erros da esquerda.

Já se falou muito no mais óbvio destes erros: a esquerda chilena participou do primeiro turno das eleições dividida entre três candidaturas presidenciais. E, no segundo turno, uma destas candidaturas titubeou no apoio a Eduardo Frei.

Também já se falou de outro erro óbvio: ao contrário da eleição anterior, quando percebeu a necessidade de mudança e lançou Bachelet, desta vez a Concertación foi hiper-conservadora. Escolheu como candidato um democrata-cristão, ex-presidente chileno, com idéias radicalmente moderadas, abrindo uma imensa brecha para que a campanha de Piñera pudesse ter como slogan a palavra: “mudança”.

Os erros acima têm relação, é óbvio, com a estratégia geral seguida pelos setores majoritários da esquerda chilena. Esta estratégia foi eficaz no quesito “governabilidade”, mas ineficaz nas “mudanças estruturais”. Isso se expressou, por um lado, na incapacidade de alterar os parâmetros constitucionais herdados do período Pinochet. E, por outro lado, numa política econômica que não foi capaz de superar a desigualdade social.

A influência desta estratégia moderada explica muito, mas não explica tudo. Afinal, foram 5 eleições e 4 vitórias. Neste sentido, há que considerar os acertos da direita (sempre forte e desta vez unificada), a fadiga de material (quatro governos seguidos) e algumas mudanças político-sociológicas ocorridas na sociedade chilena.

Há um quarto elemento, contudo, que deve ser estudado com atenção. Em 1973, o golpe não surpreendeu ninguém. Em 2009-2010, a derrota estava visível no horizonte. As situações são profundamente distintas, mas vale questionar por qual motivo –nos dois casos- a esquerda chilena, mais exatamente seu setor majoritário, foi incapaz de fazer uma correção de rumo.

Entre os vários motivos, cito um que pode ser encontrado nos mais diferentes países e matizes da esquerda: certa tendência a maximizar os feitos e minimizar os defeitos. Cuja acumulação, como sabemos, transforma quantidade em qualidade.

Para além do balanço acerca da derrota, é preciso preparar a resistência contra os vitoriosos. Há alguns dias, uma decisão judicial cassou a atuação legal do Partido Comunista do Chile, colocando em questão inclusive a posse de três parlamentares recém-eleitos. Isso é um sinal do que vem por aí.

A batalha do Chile continua, lá e em toda a América Latina. Outubro, no Brasil, será um momento absolutamente decisivo. Aprendamos com as derrotas, para saber como evitá-las.

Papo de carro, de calor e de dinheiro

Copenhague 2010, Lula 2014. Duas coisas nas quais me incomoda pensar.

O rei quer tirar férias, e deixar sua camareira tomando conta do castelo por quatro verões. Longe dali, os reis se reúnem numa terra fria para falar do calor que todos nós sentimos.

Paro de me ocupar dessas coisas, e vou ler a fatura do VISA que chegou. Um carro velho passa na rua lançando uma fumaça preta…

Sempre me perguntei por que não criar um sistema de imposto progressivo para veículos a partir de cinco anos de uso. Imagine: você compraria um veículo 2010 flex, com isenção de IPI, e pagaria um tributo realmente baixo pela posse do veículo até 2014, quando sobre o carro passaria a incidir um imposto progressivo ano a ano, sempre calculado com base no valor comercial do veículo. Como o carro deprecia e o imposto cresce, em muito pouco tempo a posse do carro seria economicamente inviável.

Por que isso?

Carros novos consomem menos combustível (e poluem menos), tem manutenção mais simples e barata, e empregam gente para serem produzidos, financiados e comercializados. Estimularíamos a aquisição de carros novos por famílias e empresas, baixaríamos a idade média da frota, e estimularíamos as montadoras, as concessionárias e o segmento dos bancos e financeiras. E o que fazer dos carros usados? Ora, o mesmo que o Japão faz: exportar. Eles, para o Pacífico. Nós, para Chávez, Lugo e Morales…

Afinal, a amizade com eles deve nos servir para alguma coisa, não é?

Sobre aquecimento global, um texto do Prof. Molion, da UFAL e do INPE, lembra que Epicuro precisa ser mais lido e respeitado.

C’est la Art long, et court le temps?

Em abril de 1998 eu cursava o terceiro ano da graduação de Filosofia, e estava trabalhando na organização de um sarau literário no CFCH/UFPE.

Não tínhamos textos para serem recitados, pois com o D.A. fechado, e sem o apoio da máquina do DCE, as adesões tinham sido muito pequenas ao evento. Após uma bela apresentação de canto coral (acho que foi do Coral Canto da Boca, da própria UFPE) que juntou um monte de gente, os organizadores pedimos a Flávio Carvalho, colega de curso, que declamasse alguns de nossos próprios textos.

Havia me lembrado de Enpassionée, um texto ligeiro, meio de brincadeira, que tinha escrito no último verão influenciado pela leitura do Ecce Homo, de Nietzsche, de La Philosophie dans le boudouir, do Marquês de Sade, e após ter assistido “A Grande Arte”, um filme que girava em torno da cutelaria, e que lançou Walter Salles como diretor de longas.

A inspiração imediata foi um soco que Fernando Rego Barros, jornalista da rede Globo local, tomou não se sabe de quem quando foi cobrir algum problema na CEASA. Lembro da cena do repórter com os óculos quebrados e rosto sangrando, um monte de leões de chácara ali por perto, e a polícia acompanhando a meia distância. A idéia era intercalar meus parágrafos com versos do soneto “A Fonte de Sangue”, do Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, para ressaltar ainda mais a dramaticidade da inspiração.

(…)

Il me semble parfois que mon sang coule à flots,

Ainsi qu’une fontaine aux rythmiques sanglots.

Je l’entends bien qui coule avec un long murmure,

Mais je me tâte en vain pour trouver la blessure.

(…)

O sangue do sujeito que foi fazer seu trabalho. Os capangas. Os precatórios, e o governo que era tido como o mais corrupto da história do Estado. Putz! O episódio da CEASA era o mundo real, enquanto nos corredores “subversivos” do CFCH só Marx, movimento de invasão de reitoria, e maconha “contra todo esse sistema que ‘tá aí…”.

Pus o texto para Flávio ler. Ele olhou para a folha de papel manuscrita, depois para mim, depois de novo para o papel. Soltou os cabelos meio como Sidney Magal nos anos setenta, e foi.

O resultado? Vaias, e um monte de gente que passou a me apontar nos corredores. Ninguém ameaçou claramente de me bater, não sei se por frouxura, senso do ridículo, ou porque nossos maconheiros só eram brabos mesmo contra o patrimônio público. Alguns deles hoje, por sinal, estão hoje nos governos.

Mas sinceramente, um monte de anos depois de o caso passado, não sei por que tanta celeuma. Era apenas um exercício estilístico, uma homenagem a grandes mestres da literatura, que não chegava nem a manifestar uma posição política clara. Nunca fui líder de nada, tampouco queria ser naquele momento. As referências do texto (na íntegra, abaixo) são intencionalmente contraditórias, contrastantes, e invocam imagens plasticamente importantes para o momento.

Ninguém comentou o mérito estético do texto – que é, admito, além de inócuo, pobre e imaturo de um ponto de vista literário – mas muitos se renderam ao apelo fácil do pensamento único. Pau nele, enfim.

Machista, bárbaro, brega, homofóbico, apologista de violência, e até ecologicamente incorreto…

É… os críticos de Enpassionée me convenceram que o melhor a fazer é falar por mim mesmo, antes que  “a vanguarda dos intelectuais” o faça. Este blog testemunha minha decisão!

 

Enpassionée

(1997)

Se alguém me perguntasse algo, poderia escolher perguntar se eu só sei falar de mulher. É verdade. Eu só sei falar de mulher. Adoro vê-las, ouvi-las, tocá-las, cheirá-las, comê-las. E se eu gosto de carne? É claro. Cozida, assada com cheiro de assassínio, cruenta, sangue escorrendo, no espetinho, na boca, na brecha dos dentes, no pasto, nas nádegas, nos lábios vermelhos, na poesia. Gosto de comer carne com mulher. E vice-versa.

Gosto de Pernambuco. De arma de fogo. De cana de cabeça. De quem não tem medo. Do Velho Faceta. De Jimmy Hendrix. De quem morre lutando. Se eu odeio palhaços? Não. Gosto de Renato Aragão, de Ariano Suassuna e até de outros coronéis do Nordeste. O que eu odeio é Miguel Arraes e Antônio Carlos Magalhães, mas isso é assunto pessoal. Gosto de Gisele Tigre, da Trupe do Barulho e do riso gostoso de Valmir Chagas. Gosto da Versão Brasileira, de Marrom e de todos os caboclinhos de Zona da Mata. Gosto de Caruaru, do monte com a antena, da Serra das Ruças. Gosto de Bernardo Viera de Melo e de todo o sacrifício imolado, do Cabo de Santo Agostinho e dos espanhóis que deixaram de nos roubar, do Santo Ofício que perseguiu nossos melhores poetas, da grande Guerra dos Guararapes e de Nossa Senhoras dos Prazeres, que não me valeram, mas que eu não deixo de louvar. Gosto de Alceu. De Melquisedec, o velho livreiro que me roubou três quartos das ilusões juvenis.  Gosto da Agamenon Magalhães e do esgoto que lhe põe vis-à-vis, lado de cá e lado de lá, Recife e Olinda, Boa Viagem e Varadouro, mascatemente.

Gosto do Hospital da Restauração e da canalha da Polícia Militar de Pernambuco. Gosto de Ferreira Gullar.  Gosto da rapazeada do Faces do Subúrbio, do Devotos do Ódio, do Planet Hemp e da Mundo Livre S/A. Gosto do Morro da Conceição, do Maracatu Cambinda Estrela, do jornalista Fernando Rego Barros, de Antúlio Madureira e de todo mundo que tem o cheiro da terra nas ventas. Gosto do sujo Treze de Maio, de Lúcia que atende na Biblioteca Estadual, dos cobradores de ônibus metidos a espertos. Do caldinho de feijão do Beco da Fome, dos peixes-bois de Itamaracá, de Adilson Ramos e da Caetés FM. Gosto do Teatro do Parque, do Forte das Cinco Pontas e do exemplo de Frei Caneca, dos Tambores Silenciosos, dos irmãos Maristas e de todas as freiras que induziram aborto tomando Cytotec. Gosto de todas as Marias de Fátima. Destas, de coração.

Gosto de Walter do Tribunal de Contas. Odeio a calma dos políticos ricos e aposentados. Amo a Ponte Buarque de Macedo, a Rua da Palma e a Praça Floriano Peixoto das putas. O pagode dos Irresponsáveis, Elza Show e seu sorriso triste, as pizzas da Pallermo e aqueles banheiros móveis, que a turma coloca nas festas de rua. Amo a turma que coloca banheiros móveis nas festas de rua. Amo o Bandeira 2, o NE TV, o Sport Club do Recife e a Escola Politécnica, da Fesp. Amo as tirinhas que saem no Jornal do Comércio, Laerte, Angeli, Charlie Brown. Amo o Mangue Beat, Geraldo Azevedo, o Biruta Bar. Amo o jeitinho da moça que me serviu caipirinha de Cointreau, e que talvez me leia, as lindas meninas do Comadre Fulozinha, a rapazeada dos Cascabulhos que redescobriu os tesouros de Jackson do Pandeiro. Mestre Salustiano e o Sonho da Rabeca. Tolero Kant e Che Guevara. Stalin e qualquer tipo de pabolagem me irritam. Fico triste com gente burra e gente ingênua. Sujeito brabo demais a gente dobra no cacete.

Gosto do mar em Calhetas, do Poço da Panela e do frio de Garanhuns. Gosto do rodízio do Porcão e da Filarmônica Norte-Nordeste. Balé Popular do Recife, rio São Francisco, gente desdentada dando duro na lavoura, Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, Grupo Gay da Bahia, Daruê Malungo e Soparia do Pina. Não gosto do vice-prefeito, Raul Henry.

Gosto sim de dobermann, de briga de foice, de prostituta que chora por amor, da execução de cada juiz corrupto no meio da rua, de cada viúva de deputado que publica nota de desagravo. Conto nos dedos os dias que faltam para que se fulminem todos os covardes. Gosto de Bezerra da Silva. De Nietzsche, de Schopenhauer e de Salman Rushdie. Gosto de Saddam Hussein, do povo de Timor Leste, de Cuba e da guerrilha do Sendero Luminoso. Gosto de Zé Limeira, o poeta do absurdo, do regicídio e do Cinema Novo. Não gosto de lobbistas, de araque de polícia, de tráfico de influência, das armas da retórica.

As melhores armas são as curtas, de baixo calibre. A melhor distância é de quatro a seis metros. A melhor posição é de pé, de frente para o alvo. O melhor alvo é o terceiro botão da camisa.

Maracatu inflado

Festa no Poço da Panela, o mais charmoso pedacinho de Casa Forte. A prévia para crianças do bloco Guaiamum Treloso trouxe de São Paulo o pessoal do Palavra Cantada, trupe liderada por Sandra Peres e Paulo Tatit, e foi muito bem organizada – exceto apenas por uma dificuldade em se encontrar o lugar do show. Mas a estrutura montada para o evento, as barraquinhas de comida e bebida, o som…. tudo direitinho. Ponto especial para os organizadores pelo cuidado em espalhar mesas e cadeiras no sítio à beira do Capibaribe. Para quem vai com crianças e pessoas de mais idade, apoio como esse é fundamental.

Levei Helena para o show, que é fã do Palavra desde miudinha, e ela amou tudo, da orquestra de frevo ao grupo de maracatu. E era justamente aqui que eu queria chegar….

O Maracatu Nação Erê fez as alfaias do show. É um grupo de percussão nos moldes de maracatu nação, formado apenas por crianças e adolescentes de Brasília Teimosa, uma comunidade pobre, apertada entre Boa Viagem e os molhes do Porto do Recife. O grupo paulista não é exceção entre os que conhecem a cultura popular pernambucana, ama nossas tradições e a criatividade de nossa gente, é fã dos Erês, e inclusive produziu o cd dos meninos capibaribes.

Ora, em nossa Mauritstaad rediviva, os únicos meninos pobres no show eram os Erês: vestiam os trajes baratos do grupo, que pareciam doação de projeto social da prefeitura.

Aqui vocês podem me dizer: meninos pretos fazendo folia para meninos brancos, afinal, nada de novo nessa capital aristocrática do nordeste brasileiro. Foi dessa dialética sem síntese que a civilização do açúcar se construiu. Freyre, morador ilustre da Casa Forte, ensinou isso ao mundo ainda no século passado.

O que me parece razão de preocupação ao invés de orgulho, contudo, é que há hoje um novo contrato social que reproduz formas antigas de crueldade. A condição de “artistas” é hoje atribuída a esses meninos como justa e generosa  retribuição pelo trabalho de manter vivas as “raízes pernambucanas”; ontem, os pais mostraram a seus filhos as outras crianças, batuqueiras de periferia, dizendo que é muito bom que elas toquem desse jeito porque isso é “cultura”, e que é importante que a cultura seja “tocada”, por assim dizer, eternamente. O que não se fala, talvez até porque não se perceba, é que não há registro na história da humanidade de país que se desenvolveu usando suas crianças como mercadoria de entretenimento. Quando meninos tocam ou pelo pequeno cachê que recebem, ou porque a efêmera condição de estrelato do Carnaval lhes alivia a dureza da vida diária, ou porque – retórica cada vez mais comum – as oficinas de percussão lhes dá “cidadania”, e diminui sua vulnerabilidade social, é porque se vive um mundo cão, sem respeito à infância ou à esperança que ela representa. Ou será que alguém pensou na escola que essas crianças freqüentam, ou no ambiente doméstico que precisam enfrentar, ou no que iriam comer quando chegassem em casa, mais tarde?  Mais longe: será que alguém pensou que no Carnaval de 2035 os milhares de Erês do Recife serão porteiros, mecânicos e manicures dos Trelosinhos?  

Nós, pernambucanos, temos o vício de celebrar frevo e maracatu como se nesse universo imaginado da “cultura pernambucana” fôssemos todos iguais… no entanto, há um grande fosso entre as nossas crianças – para quem o maracatu é apenas um espetáculo lúdico – e as “outras” crianças: as que tocavam os bombos, que guardavam o carro no lado de fora, que trabalhavam recolhendo latinhas de alumínio, ou que simplesmente viam da calçada da Estrada Real o corso de crianças bonitas e felizes irem alegremente, com suas famílias, se divertir numa agradável tarde de domingo.

Para conviver melhor com nossas mazelas, hipervalorizamos os símbolos do maracatu. E com isso, talvez sem nos darmos conta, subtraímos boa parte de sua beleza.

… e os veados de Allan Sales.

Contemporaneidade  

Allan Sales – 2008

I

Carlos Pena fosse vivo

Acharia tão ruim

Pois seu velho Bar Savoy

Hoje em dia está assim:

– São trinta copos de chope

– São trinta homens sentados

– Quinze deles são michês

– Os outros quinze os viados

II

Na Marim do Caetés

Seria bem diferente

Pois Bar Savoy lá não tem

Tem Marola lugar quente:

– São trinta copos de chope

– São trinta doidos sem rumo

– Quinze deles quando saem

– Vão ali queimar um fumo

III

No Coque e Joana Bezerra

João de Barros Santo Amaro

Já não são copos de chope

Cujo porre sai bem caro:

– São trinta copos de cana

– São trinta cabras lascados

– Vinte nove quando correm

– Porque um foi baleado

IV

Já na praia do turismo

Carlos Pena chegaria

Entocaria o relógio

Celular e a mixaria:

– São trinta louras geladas

– Na areia a diversão

– Mas ninguém encara a água

– Com medo de tubarão

V

Carlos Pena certamente

Vê tudo isso do além

Na Pracinha do Diário

Bem diferente também:

– São trinta, não bebem chope

– São trinta que enchendo a cuia

– Trinta vezes dez por cento

– E um pastor diz aleluia.


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