Quer saber?
A polarização esquerda-direita costuma servir, em termos ideológicos e eleitorais, muito para poucos, e muito pouco para a maioria. E isso será muito ruim para o país que, tendo incorrido nesta armadilha em sua juventude democrática, não saiba sair dela depois da conquista da estabilidade política. No nosso caso, a tal visão de mundo left-right (droite-gauche, pour les nostalgiques) já serviu, no passado, à bem avaliada direita de Médici, e serve hoje à igualmente bem avaliada esquerda de Lula. Foi muito ruim para o brasileiro médio da década de 70 – que aspirava por democracia e melhores condições de vida, e recebeu ditadura e inflação – e continua terrível agora – quando o mesmo sujeto aspira, mais amplamente, por desenvolvimento econômico e social, redução nos impostos e ética na política. Em minha pobre leitura, à distância dos Andes e do calor das ruas de Santiago, pois já faz dez anos que não vou por lá, o Chile sabiamente desistiu de tal bisonhice do século 20.
Parece-me que o texto de Valter Pomar (abaixo, e no link), que é um sujeito muito dado a manifestos e convocações à luta, revela, ao contrário, uma postura saudosista dos anos 70 do século passado, quando muitos de nós nascia, e dava os primeiros passos (só não sei ainda, pela sua truculência, se o cara está à “direita” ou à “esquerda”).
Para Pomar há sempre uma “Grande Batalha” acontecendo… lembro-me então do menino que fui, e que lia, no fim dos anos 80 numa Campina do Barreto onde faltava tudo menos dignidade, o texto de Orwell. Posso dizer, sem peso de consciência: puta que pariu!
Há em Pomar uma injustificável torcida por um futuro muito pior que aquele que eu desejo para o mim e para meu país, caso o resultado das urnas seja adverso ao apregoado pelo seu (nosso, quicá?) partido. Ameaça? Ah, Pomar… o delegado Fleury era muito mais competente em ameaçar…
Quer dizer que, se o Brasil não votar “em nós”, “já sabe”? Vai mesmo acabar o Bolsa-Família, o Vale-Bandido, e outros presentinhos da espécie? Não brinca….
Sinto que a elite do PT, que teve outrora íntima sintonia com a classe média, confirma lamentavelmente, pela sua atitude, que o que há em todas as sociedades é uma luta constante entre a elite no poder e o grande grupo dos que são dele excluídos. Não seria, então, uma luta de classes, ou uma maniqueísta luta entre os “esquerdistas do bem” e os “direitistas do mal” que moveria a história humana, mas uma real e impiedosa luta de elites, que não se extinguiria nem se fossem extintas todas as classes sociais. Pelo contrário: a “luta de classes” dos marxistas, assim como a antiga luta pelos “interesses nacionais” dos militares da ESG, escamoteiariam a real luta que ocorre em busca do poder, uma luta pragmática em pela ocupação de espaços e pelo controle de recursos. Do mesmo jeito que choviam casos de favorecimento e uso da máquina na época de FHC, não são raros os casos de corrupção no governo atual divulgados pela imprensa. Em ambos casos, as respostas do governo – quando os casos são/eram respondidos – é que se trata de denuncismo puro e simples.
Manter a sociedade dividida em classes é, dessa maneira, também interesse da “esquerda constituída” por várias razões. Dois de seus principais interesses nessa estratificação cruel são 1. o fato de que apenas a existência de pronunciada de pobreza material e espiritual na população justifica a tradicional retórica “de esquerda”, pois confere enraizamento social ao seu discurso, e lhe permite o alinhamento estratégico de sindicatos e de algumas entidades da sociedade civil (o controverso MST entre elas), e 2. ainda mais estranho, e desonesto, é o fato de que a condição de “liderança de esquerda” representa para seus líderes um canal de acesso aos estratos sociais superiores à sua condição de origem. “Liderança popular/ de esquerda”, é hoje, ao lado de jogador de futebol e pagodeiro, um efetivo mecanismo de mobilidade social. Um dos interesses opera no atacado, o outro, no varejo, e o resultado é um só: “a luta de esquerda precisa continuar”, “a mudança continua”, etc.
Olhem, amigos, para o Chile: tudo o que podia se esperar de Michele Bachelet – uma líder política séria – diferentemente de José Genoíno e J. R. Arruda – e da Concertacíon foi feito ao longo de 20 longas primaveras. Em geral, bons governos, adequados ao seu momento histórico e à sua missão de conduzir o país de volta à estabilidade democrática. Ora, se é de fato assim, apenas um projeto “conservador de esquerda” – e defensor dos interesses de elites políticas, à Michells, que são muito mais orinetadas aos seus interesses particulares que aos difusos interesses nacionais – podia dizer que Piñera não era a melhor alternativa para o momento chileno atual. O empresário era o único entre os candidatos que reconhecia que uma política de estímulo à produção e ao emprego, ancorada na defesa radical das liberdades civis ao invés da ampliação dos já pesados benefícios sociais, poderia manter a condição de destaque do país no continente.
Conduzi, e tive acesso aos resultados de, algumas pesquisas qualitativas que revelam que o cidadão recifense (e brasileiro) típico não é de direita nem de esquerda; talvez seja a favor ou contra o governo, ou a favor ou contra um ou outro candidato. No caso do Chile, o país mais próspero da AL, acredito que o eleitorado chegou a um nível de maturidade política no qual a vergonha da figura, e do infame período de Pinochet, não deve definir que grupos democráticos, orientaods ao mercado e à valorização da iniciativa individual, sejam vistos como responsáveis pelos abusos dos seus pretéritos ditadores. Piñera, que de acordo com seu staff de campanha não é “de direita” nem “de esquerda”, não deve se envergonhar por não ter sido preso ou torturado, e por se posicionar altivamente como uma alternativa à Concertacion. Ela, de esquierda, provavelmente deixaria o Chile muito parecido com a Argentina se governasse o país mais uma vez, mas preservaria rica e poderosa a sua elite dirigente.
Intimamente, neste sábado de Galo da Madrugada, acho que não há mais, se é que já houve, “direitista” ou “esquerdista”, no Brasil. Tem, sim, gente boa e gente ruim, e a maior parte da elite dos “ruins” já governou nos últimos 50 anos. E os bons, lamentavelmente, estão rareando.
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A batalha do Chile
Por Valter Pomar, secretário de relações internacionais do Partido dos Trabalhadores
A oposição de direita, no Brasil, está exultante: a eleição chilena seria a demonstração de que é possível derrotar uma candidatura apoiada por um governo bem avaliado por mais de 80% da população.
A direita européia também está contente: a eleição de Piñera (e, antes dele, do presidente do Panamá) demonstra que o modelo sarkozy-berlusconiano está fazendo escola. Filhote do pinochetismo e enriquecido pela privataria, Piñera é uma demonstração do que os capitalistas entendem por “igualdade de oportunidades”.
A direita latina e norte-americana está igualmente feliz: derrotados desde 1998 na maioria das eleições do subcontinente e recém-derrotados nas disputas presidenciais ocorridas no Uruguay e Bolívia, os conservadores podem apresentar o caso chileno como demonstração de que é possível reverter, nas urnas, “civilizadamente”, sem golpes, a hegemonia da centro-esquerda sulamericana.
Mas felizes mesmo estão os “gorilas” chilenos, que comemoraram ruidosamente, inclusive agitando nas ruas fotografias do falecido ditador, a derrota da Concertación. É a primeira vez, desde a década dos 1950, que a direita chilena consegue maioria eleitoral.
Eles têm motivos para felicidade. E a esquerda deve botar as barbas de molho.
Em primeiro lugar, porque a vitória de Piñera fortalece o bloco de governos alinhados com os Estados Unidos e opositores da integração continental. Colômbia e Peru ganham, assim, um aliado importante.
Em segundo lugar, porque está vitória não é um fato isolado. Ela faz parte de uma contra-ofensiva desencadeada pela direita latino-americana, apoiada pelo governo dos Estados Unidos e pela direita da União Européia. Esta contra-ofensiva inclui os ataques contra os “elos fracos” da rede de governos progressistas, como é o caso de Honduras; inclui o fortalecimento e a extensão da presença militar estado-unidense na região, a exemplo das bases na Colômbia e da IV Frota; e inclui uma provocação permanente contra a Venezuela.
Em terceiro lugar, mas principalmente, porque a derrota chilena foi produto combinado dos acertos da direita, com os erros da esquerda.
Já se falou muito no mais óbvio destes erros: a esquerda chilena participou do primeiro turno das eleições dividida entre três candidaturas presidenciais. E, no segundo turno, uma destas candidaturas titubeou no apoio a Eduardo Frei.
Também já se falou de outro erro óbvio: ao contrário da eleição anterior, quando percebeu a necessidade de mudança e lançou Bachelet, desta vez a Concertación foi hiper-conservadora. Escolheu como candidato um democrata-cristão, ex-presidente chileno, com idéias radicalmente moderadas, abrindo uma imensa brecha para que a campanha de Piñera pudesse ter como slogan a palavra: “mudança”.
Os erros acima têm relação, é óbvio, com a estratégia geral seguida pelos setores majoritários da esquerda chilena. Esta estratégia foi eficaz no quesito “governabilidade”, mas ineficaz nas “mudanças estruturais”. Isso se expressou, por um lado, na incapacidade de alterar os parâmetros constitucionais herdados do período Pinochet. E, por outro lado, numa política econômica que não foi capaz de superar a desigualdade social.
A influência desta estratégia moderada explica muito, mas não explica tudo. Afinal, foram 5 eleições e 4 vitórias. Neste sentido, há que considerar os acertos da direita (sempre forte e desta vez unificada), a fadiga de material (quatro governos seguidos) e algumas mudanças político-sociológicas ocorridas na sociedade chilena.
Há um quarto elemento, contudo, que deve ser estudado com atenção. Em 1973, o golpe não surpreendeu ninguém. Em 2009-2010, a derrota estava visível no horizonte. As situações são profundamente distintas, mas vale questionar por qual motivo –nos dois casos- a esquerda chilena, mais exatamente seu setor majoritário, foi incapaz de fazer uma correção de rumo.
Entre os vários motivos, cito um que pode ser encontrado nos mais diferentes países e matizes da esquerda: certa tendência a maximizar os feitos e minimizar os defeitos. Cuja acumulação, como sabemos, transforma quantidade em qualidade.
Para além do balanço acerca da derrota, é preciso preparar a resistência contra os vitoriosos. Há alguns dias, uma decisão judicial cassou a atuação legal do Partido Comunista do Chile, colocando em questão inclusive a posse de três parlamentares recém-eleitos. Isso é um sinal do que vem por aí.
A batalha do Chile continua, lá e em toda a América Latina. Outubro, no Brasil, será um momento absolutamente decisivo. Aprendamos com as derrotas, para saber como evitá-las.